5 de dezembro de 2011

Crítica - RICKY


François Ozon é um diretor que dentro de sua filmografia intercala obras muito diferentes entre si, tanto na forma quanto nos temas centrais do enredo. Sua carreira é formada por inúmeros curtas-metragens, mas é em 1998 que faz seu primeiro longa, Sitcom, uma crítica a burguesia moderna que assume certos tons surrealistas e macabros. Mas é em 1999 que se afirma na direção e nos principais festivais, com o longa Les Amants Criminels, uma espécie de João e Maria com pitadas de homossexualismo e agressão física. Se notarmos, desde 1998 até 2011, Ozon lançou onze filmes, uma média de um filme por ano, o que é uma grande quantia em relação ao tempo de espaço de um filme a outro. Talvez seja esse um dos motivos de sua filmografia ser repleta de variações, que passam desde comédias musicais (8 Mulheres) a crimes hitchcockianos  (Swimming Pool - À Beira da Piscina ).  

Ozon mesmo não se enquadrando a um padrão de cinema autoral fixo e rigorosamente religioso em sua estética, mantém certos traços que prevalecem em suas obras, sobretudo o humor ácido e a valorização da figura feminina como fonte de inspiração e de provocações. Ozon filma uma mulher excelentemente bem! Ele a observa em detalhes e nos passa um olhar apaixonado sobre elas, mas uma contradição é obvia, mesmo em 8 Mulheres, considerado o seu filme mais feminino, para mim é o mais distante e nada sincero com sua proposta. O feminismo de Ozon está na crueldade e no poder de interferência que a mulher pode imprimir em certas ocasiões, geralmente, nas menos confortáveis possíveis.

Em Ricky, filme de 2009, o diretor nos oferece uma narrativa clássica que provoca certa estranheza pela naturalidade em que sustenta o seu elemento de estopim ( não é exatamente isso...), um bebê que aos poucos nasce asas em suas costas. Ricky carrega grande parte dos pontos de convergência dos inúmeros temas em que Ozon já trabalhou, mas aqui eles estão juntos e mais evidentes do que nunca. A violência física, a família, o sexo, e não podia faltar, é claro, a mulher. O que vemos acontecer com o bebê é construído de forma gradativa e simples, não há tentativas de esconder o mistério ou as suas costas, mesmo que no trailer oficial este fato, as asas, sejam forçadamente omitidos. A questão é que para se crer neste absurdo cientifico Ozon coloca nossos pés no chão com uma grande e detalhada introdução aos personagens. Quase metade do filme é voltada para as mudanças na rotina da filha Lisa (Mélusine Mayance)  com o novo namorado de sua mãe (Alexandra Lamy), que conheceu na fábrica em que trabalha, e antes mesmo desse aproximamento dos dois, a relação mãe e filha é o ainda mais explorado, como na cena em que Lisa prepara todo o café da manhã e é responsável por acordar sua preguiçosa mãe. Uma cena corriqueira, mas que torna o filme mais palpável e sensível.
  
A gravidez em Ricky é passageira e rápida, os planos em que descobrimos que Katie está grávida  até ter de fato o bebê são acelerados, apenas alguns cortes para explicar a elipse temporal. O que importa são as consequências desse parto, não o seu longo e ardo período, fato que é contrário em seu próximo filme, O Refugio, onde esmiúça de forma intimista os meses de gestação de uma jovem viciada em heroína.  

A estranheza presente em todo filme não é de se estarrecer ou causar incômodos, como em Trabalhar Cansa, o mais estranho do ano. O fato de Ricky nascer com asas é mais um motivo de desestabilização moral da família do que alguma premissa em que o filme se sustenta a todo instante, sendo essa mudança familiar acompanhada desde o envolvimento e a dominância do relacionamento de Katie com Paco. Este sim é apenas um dos reais assuntos da trama. As asas, além de impor um clima bizarro para filme é também o que traz em alguns momentos o humor negro de Ozon, mesmo que sejam suaves, como na cena em que o bebê voa pelo supermercado causando um caos entre os comprantes e também os variados planos em close do rosto de Ricky fazendo gracinha e sorrindo para a câmera, que subtamente conquistam o carisma.  É na cena do supermercado que os franceses, e em seguida o mundo, descobrem o bebê voador. A partir dai inúmeros jornalistas e câmeras são frequentemente vistos em quadro, a mídia corre pelo caso efêmero do bebê com asas! Mas mesmo com toda essa atenção que Ricky atrai, não só da TV como também de nós, espectadores passivos, o filme não é dele. O pôster do filme é de Ricky com seu enorme rosto, os noticiários de TV são Ricky, Katie e Paco são de Ricky, menos o filme! O filme não é de Ricky, e sim de sua irmã, Lisa.  
Interpretada de forma fria e concisa por Mélusine Mayance, Lisa que inicia com certa importância no enredo, não mais do que sua mãe e seu novo namorado, se desmancha após o nascimento de seu irmão. Sua relação com as pessoas é o que há de mais interessante em Ricky. Ela toma de conta da casa e do bebê, não mostra carinho por seu "novo pai" e sente um ciúme quase invisível, mas que está presente em suas feições apáticas, por seu irmão, agora importante por sua anomalia física. A mulher de Ozon neste filme é Lisa, ainda bem. A sua ação mais intensa, creio que do filme todo em si, é quando pega uma tesoura de papel e coloca entre as vértebras das asas de seu irmão, ela quer finalizar todo o show instalado, quer a normalidade de antes, de sua vida com sua mãe. De manhã escola e de noite jantar.    

A sinceridade de Ozon em relação aos sentimentos de Lisa é o que me tocou profundamente, os planos finais abandonam Ricky, uma questão de escolha inusitada. Lisa anda de moto abraçada com paco, seu "novo pai", enquanto de fundo toca a bela canção The Greatest de Cat Power (já conhecida da trilha de Um Beijo Roubado, de Wong Kar-Wai). Ela está feliz, com um lindo e leve sorriso... Seu irmão fugiu, não voltou mais.  

Mélusine Mayance se mostra uma das melhores atrizes mirins do cinema atual. Ricky foi o seu primeiro contato com a atuação, em seguida fez algumas séries de TV e atualmente pode ser vista nos cinemas novamente, com o filme A Chave de Sarah, de Gilles Paquet-Brenner. Mélusine Mayance doa grande parte da carga dramática para o filme de François Ozon, onde a mulher constrói gradativamente e pausadamente a sua importância nesse conto de horror, ao contrário dos outros de seus filmes, onde elas são de cara, a atração principal.

3 comentários:

  1. Olá Lucas.

    Ricky é daquelas surpresas mais inesperadas. Quando o garotinho chega no topo do armário eu simplesmente não conseguia entender como ele o fazia até a revelação. Eventualmente, a mensagem de que ele é um anjo na vida de sua mãe parece bastante forçada, mas como exercício narrativo é um filme interessante e gostoso.

    Não te conheci aqui, a nossa comunidade cinéfila é muito dispersa (infelizmente). Estava com um projeto de acionar algumas distribuidoras para começar a realização de cabines de imprensa (acredito que uma cidade de mais de 1 milhão de habitantes e futuramente, quase 25 salas de cinema mereça isso).

    Aceito a parceira, e desejo muito sucesso e sorte nesse mundo blogueiro.

    Abraços.

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  2. Oi Márcio!

    Obrigado por aceitar. Hoje de noite coloco o banner do blog do lado.

    Pois é! Eu vou passar três meses aqui em São Luís, tô de férias da faculdade. Mas as cabines seriam ótimas! São Luís é uma grande capital e faltam BOAS críticas nos meios de comunicações mais visíveis. Tem inúmeras revistas, daqui também, com textos sobre filmes, mas tudo bem raso.

    Até!

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  3. Esse filme até agora me deixa dúvidas...Ricky era real? Ou fruto da imaginação de Lisa? Ele partiu...pois foi pra adoção?

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