21 de dezembro de 2011

Crítica de ABATE e YOU BITCH DIE!!! por Cid Nader no III Festival de Cinema da Fronteira


Dia 17 ocorreu o último dia do III Festival de Cinema da Fronteira. O grande vencedor do prêmio de Melhor Filme foi o curta-metragem de animação O Céu no Andar de Baixo, do diretor Leonardo Cata-Preta. O filme é um retrato esquizofrênico e sentimental sobre um ângulo diferente do amor, merecido prêmio. E é nesse contexto que percebo como o cinema de animação vem se fixando na produção nacional, que tinha um espaço limitado em mostra e festivais por uma divisão fixa entre ficção e animação. Curioso saber que além de O Céu no Andar de Baixo outra animação tenha ganhado, no mesmo ano, o prêmio de Melhor Curta em um dos mais prestigiados festivais nacionais, Gramado. Falo de Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo, curta do diretor gaúcho Rodrigo John, que também esteve na mostra competitiva, além de premiado por sua trilha sonora, no III Festival de Cinema da Fronteira, em Bagé. (Lista dos curtas premiado aqui). 

Durante o festival foram homenageados o crítico Jean-Claude Bernardet e a musa do cinema marginal Helena Ignez. Dentre os convidados, a atriz Ingra Liberato, que apresentou o festival ao lado de Leonardo Machado. Além de Aurora Miranda Leão, a curadora da mostra competitiva de curtas, e o crítico Cid Nader, que acompanhou e escreveu sobre todos os curtas-metragens do festival em seu site Cinequanon

E são essas críticas que posto a baixo, sobre dois dos meus curtas na mostra competitiva: ABATE e YOU BITCH DIE!!!

ABATE, de Lucas Sá. Brasil (MA), 14 min.
Por: Cid Nader

Uma novidade vinda do Maranhão (talvez indicando mais um polo difusor lá no nosso Nordeste), esse Abate bebe nitidamente da fonte dos filmes pernambucanos para contar uma história de revolta feminina por opressão machista: algo tão comum ainda no mundo, mas que toca muito mais profundamente em uma região de tradição absolutamente masculina.  

Só que beber da fonte, somente, poderia resultar em cópia de estilo, vazio no mote e no modo. Negativo. Lucas Sá demonstra ter noção bastante complexa e bem elaborada de estética e técnica. O filme é de fotografia não conformada, que busca o inusitado nos ângulos (enquanto o momento “comum” subserviente da mulher existe, filma-se seus pés a caminho do açougue, para a inversão do ângulo quando uma outra possibilidade de continuidade de vida é pensada, por exemplo), e também bastante atenta às possibilidades de contrastes emprestadas pelo bom uso da iluminação.  

No corte, na edição (e novamente lembrando alguns outros filmes de Pernambuco), o contar a história ultrapassa a “simples” barreira da fluidez, para que interferências intrometidas até na marra se façam responsáveis pelo adensamento do clima. Desde o início, a montagem não permite a acomodação do espectador, e a tela se enche de variações cromáticas ou de ritmo. Portanto, as invenções e tentativas que resultaram um curta bem interessante não são resultado – o que seria até razoável de se imaginar - de acumulação crescente, mas de ritmo imposto desde os primeiros instantes: algo bem mais difícil de ser mantido e obtido. (Veja o curta aqui).


YOU BITCH DIE!!! , de Lucas Sá. Brasil (MA), 03 min.
Por: Cid Nader

Brincadeirinha de Lucas Sá – o diretor talvez seja uma novidade maranhense surgindo para ser a vanguarda de mais uma cinematografia regional surgindo, e revelando-se com evidente característica urbana, ao compilar informações que extrapolam as distâncias de seu Estado -, filmada mais para ser vista na Internet do que numa telona. O tratamento é em cima da linguagem, dos filmes trash dos anos 70, com os típicos exageros necessários para tal reverência (falta de cuidado, hiper-cores, hiper-cafonices, seres estranhos habitando a tela e sangue, de preferência), e feito de modo bastante ligeiro, para que não se necessitasse muito espaço e tempo demais demandado para a conclusão. 

Para tal ligeireza vista na telona, a ideia de representar um trailler revelou-se boa sacada. Mas, muitos trabalhos similares já foram vistos (aliás, há até uma certa moda no estilo se repetindo), e muitos, também, com melhor desempenho numa sala escura de cinema: o que faz notar o quanto esse deve ter sido pensado mais como uma ação para divertir amigos, nas madrugadas diante da telinha do computador. (Veja o curta aqui).

20 de dezembro de 2011

Xuxa e O Dia da Besta


Curioso saber como a fama de que a rainha dos baixinhos é adoradora do capeta. Não no Brasil, mas na Espanha! Ontem estava vendo O Dia da Besta quando me deparo com uma cena em que a imagem de Xuxa é apresentada de forma bem suspeita...   

Nada como um bom e sacana humor negro de Alex de la Iglesa, diretor do recente e excelente Balada Triste de Trompeta, grande vencedor do Festival de Veneza de 2010. O exagero visual de la Iglesa está presente em todas as suas obras, já em seu segundo longa e o mais adorado, O Dia da Besta, é este exagero que proporciona grande parte do humor do filme. Dentre as piadas, e a mais sutil, está a de Xuxa e seu carinho por Satã.   

A cena em questão é uma reportagem de TV do programa em que o professor e suposto médium Cavan apresenta. A reportagem sensacionalista investiga um caso de possessão demoníaca de um garoto com uns 10 anos de idade. A câmera documental entra nos corredores da casa enquanto Cavan explica o que está acontecendo no local. Eles abrem a porta e o que vemos é um garoto se debatendo na cama com uma espuma branca na boca, mas o que realmente chama a atenção (sobretudo para nós brasileiros) é o singelo e catito quadro de uma das capas do cd da Xuxa pendurado em cima da cama do garoto endiabrado.  

Bem colocado Sr. Alex de la Iglesa... Bem colocado!

17 de dezembro de 2011

Lego, 8 Bits e uma idéia na cabeça!

Por: Airton Rener


Lego - popularmente conhecido como brinquedo de montar - é um brinquedo com quantidade variada de peças que se encaixam permitindo inúmeras combinações. Não existe idade para “brincar” com LEGO, os únicos fatores limitantes são a criatividade e os cifrões. Seu potencial psico-criativo é tão forte que é usado como instrumento pedagógico em jardins de infância e até mesmo em universidades nas áreas de robótica e mecatrônica os quais geralmente usam a linha especifica LEGO Technic.

A dupla sueca Ninja Moped, também conhecida como Rymdreglag é uma banda eletrônica independente que foram além de suas imaginações ao "brincar de montar" e criaram um vídeo clipe simulando os clássicos jogos da Nintendo de 8Bits (Nes) através da técnica Stop Motion com o uso de peças de Lego. O resultado é tão surpreendente que chegamos até duvidar do uso de computação gráfica.

Para os Geeks de plantão é um prato cheio!



15 de dezembro de 2011

DEATH PROOF - Análise do cartaz

 Por: Lucas Kurz

À Prova de Morte (Death Proof, 2007, EUA) é um filme digirido por Quentin Tarantino e estrelado por Kurt Russell, Rosario Dawson, Vanessa Ferlito e Jordan Ladd, tem duração de 133 minutos e é do gênero Terror.

SINOPSE:  Ao cair da noite, Jungle Julia (Sydney Tamiia Poitier), a DJ mais sexy de Austin, pode enfim se divertir com as suas duas melhores amigas. As três garotas saem noite adentro, atraindo a atenção de todos os frequentadores masculinos dos bares e boates do Texas. Mas nem toda atenção é inocente. Cobrindo de perto seus movimentos está Stuntman Mike (Kurt Russell), um rebelde inquieto e temperamental que se esconde atrás do volante do seu carro indestrutível.

SOBRE O AUTOR DO POSTER:  Infelizmente, após muita pesquisa não foi encontrada NENHUMA informação técnica sobre o cartaz, muito menos a autoria do mesmo.

IDENTIFICAÇÃO DOS ELEMENTOS:

 
CÍRCULO:  No cartaz foi encontrado um círculo perfeito, tangenciado pelo sol da paisagem. O círculo abrange também parte do carro, até a caveira estampada no capô, e se finaliza antes dos nomes ‘Kurt Russell’, ‘Quentin Tarantino’ e o título do filme.







ÂNGULOS/QUADRADO:  Aqui vemos alguns ângulos formados pela estrada (que é meio desproporcional, errada) na perspectiva da cena. Vemos também o cartaz cortado ao meio horizontalmente e verticalmente, e o quadrado em perspectiva formado pelo automóvel.







ÂNGULOS:  Aqui temos mais ângulo formados pelas linhas da estrada e no chão , formando pontos de fuga na composição.











TRAÇADOS REGULADORES

  RADIAL:  Traçando círculos podemos limitar vários elementos da composição. O primeiro círculo delimita a caveira no capô e as oito silhuetas femininas perfeitamente. O segundo delimita o sol. O terceiro delimita toda a parte da frente do automóvel, e o quarto delimita até o título.  







PARALELOS:  As únicas retas paralelas exatas presentes neste cartaz são a delimitação da faixa de cima e a linha do horizonte.









 CENTRALIDADE:  A composição apresenta linhas diagonais que vão ligeiramente à mesma direção, entretanto, não encontram o mesmo ponto de fuga.









CENTRALIDADE:  Aqui podemos ver os vários pontos de fuga encontrados, o que indica que essas linhas de perspectivas não estão tão fiéis à realidade.






 


SIMETRIA/PARALELISMO:  Como já foi dito, só existem duas retas exatamente paralelas. Muitos elementos no cartaz são simétricos horizontalmente, como o sol, a estrada, o automóvel, etc. O cartaz é bem equilibrado, e também apresenta uma simetria relativa verticalmente.





 PROPORÇÃO  

 Primeiro foi usado o círculo que tangencia o sol para fazer uma escala procurando alguma proporção com o resto do cartaz. Os círculos encontrados, de certa forma, organizam bem a composição; o de baixo abrange a área do título, direção, etc. Os outros dividem as áreas da composição de forma razoavelmente uniforme.






Aqui temos a proporção alcançada pelo método do retângulo raiz de dois, usando o quadrado que delimita o sol temos a proporção das figuras do sol, as silhuetas, o automóvel e o título.








 
Aqui também foi usado o método raiz de dois, porém sem resultado satisfatório.









 

A primeira aplicação do método raiz de dois foi melhor explorada, encontrando outras proporções na composição, como o limite do carro e o tamanho do título.









MALHA 
 
Numa primeira tentativa de encontrar uma malha, usando o diâmetro do círculo que tangencia o sol, a malha não ficou satisfatória.







 

Usando a altura da faixa que comporta os nomes ‘Quentin Tarantino’ e “Robert Rodriguez”, na parte superior do cartaz, foi possível desenvolver uma malha mais satisfatória, melhor definida.







5 de dezembro de 2011

Crítica - RICKY


François Ozon é um diretor que dentro de sua filmografia intercala obras muito diferentes entre si, tanto na forma quanto nos temas centrais do enredo. Sua carreira é formada por inúmeros curtas-metragens, mas é em 1998 que faz seu primeiro longa, Sitcom, uma crítica a burguesia moderna que assume certos tons surrealistas e macabros. Mas é em 1999 que se afirma na direção e nos principais festivais, com o longa Les Amants Criminels, uma espécie de João e Maria com pitadas de homossexualismo e agressão física. Se notarmos, desde 1998 até 2011, Ozon lançou onze filmes, uma média de um filme por ano, o que é uma grande quantia em relação ao tempo de espaço de um filme a outro. Talvez seja esse um dos motivos de sua filmografia ser repleta de variações, que passam desde comédias musicais (8 Mulheres) a crimes hitchcockianos  (Swimming Pool - À Beira da Piscina ).  

Ozon mesmo não se enquadrando a um padrão de cinema autoral fixo e rigorosamente religioso em sua estética, mantém certos traços que prevalecem em suas obras, sobretudo o humor ácido e a valorização da figura feminina como fonte de inspiração e de provocações. Ozon filma uma mulher excelentemente bem! Ele a observa em detalhes e nos passa um olhar apaixonado sobre elas, mas uma contradição é obvia, mesmo em 8 Mulheres, considerado o seu filme mais feminino, para mim é o mais distante e nada sincero com sua proposta. O feminismo de Ozon está na crueldade e no poder de interferência que a mulher pode imprimir em certas ocasiões, geralmente, nas menos confortáveis possíveis.

Em Ricky, filme de 2009, o diretor nos oferece uma narrativa clássica que provoca certa estranheza pela naturalidade em que sustenta o seu elemento de estopim ( não é exatamente isso...), um bebê que aos poucos nasce asas em suas costas. Ricky carrega grande parte dos pontos de convergência dos inúmeros temas em que Ozon já trabalhou, mas aqui eles estão juntos e mais evidentes do que nunca. A violência física, a família, o sexo, e não podia faltar, é claro, a mulher. O que vemos acontecer com o bebê é construído de forma gradativa e simples, não há tentativas de esconder o mistério ou as suas costas, mesmo que no trailer oficial este fato, as asas, sejam forçadamente omitidos. A questão é que para se crer neste absurdo cientifico Ozon coloca nossos pés no chão com uma grande e detalhada introdução aos personagens. Quase metade do filme é voltada para as mudanças na rotina da filha Lisa (Mélusine Mayance)  com o novo namorado de sua mãe (Alexandra Lamy), que conheceu na fábrica em que trabalha, e antes mesmo desse aproximamento dos dois, a relação mãe e filha é o ainda mais explorado, como na cena em que Lisa prepara todo o café da manhã e é responsável por acordar sua preguiçosa mãe. Uma cena corriqueira, mas que torna o filme mais palpável e sensível.
  
A gravidez em Ricky é passageira e rápida, os planos em que descobrimos que Katie está grávida  até ter de fato o bebê são acelerados, apenas alguns cortes para explicar a elipse temporal. O que importa são as consequências desse parto, não o seu longo e ardo período, fato que é contrário em seu próximo filme, O Refugio, onde esmiúça de forma intimista os meses de gestação de uma jovem viciada em heroína.  

A estranheza presente em todo filme não é de se estarrecer ou causar incômodos, como em Trabalhar Cansa, o mais estranho do ano. O fato de Ricky nascer com asas é mais um motivo de desestabilização moral da família do que alguma premissa em que o filme se sustenta a todo instante, sendo essa mudança familiar acompanhada desde o envolvimento e a dominância do relacionamento de Katie com Paco. Este sim é apenas um dos reais assuntos da trama. As asas, além de impor um clima bizarro para filme é também o que traz em alguns momentos o humor negro de Ozon, mesmo que sejam suaves, como na cena em que o bebê voa pelo supermercado causando um caos entre os comprantes e também os variados planos em close do rosto de Ricky fazendo gracinha e sorrindo para a câmera, que subtamente conquistam o carisma.  É na cena do supermercado que os franceses, e em seguida o mundo, descobrem o bebê voador. A partir dai inúmeros jornalistas e câmeras são frequentemente vistos em quadro, a mídia corre pelo caso efêmero do bebê com asas! Mas mesmo com toda essa atenção que Ricky atrai, não só da TV como também de nós, espectadores passivos, o filme não é dele. O pôster do filme é de Ricky com seu enorme rosto, os noticiários de TV são Ricky, Katie e Paco são de Ricky, menos o filme! O filme não é de Ricky, e sim de sua irmã, Lisa.  
Interpretada de forma fria e concisa por Mélusine Mayance, Lisa que inicia com certa importância no enredo, não mais do que sua mãe e seu novo namorado, se desmancha após o nascimento de seu irmão. Sua relação com as pessoas é o que há de mais interessante em Ricky. Ela toma de conta da casa e do bebê, não mostra carinho por seu "novo pai" e sente um ciúme quase invisível, mas que está presente em suas feições apáticas, por seu irmão, agora importante por sua anomalia física. A mulher de Ozon neste filme é Lisa, ainda bem. A sua ação mais intensa, creio que do filme todo em si, é quando pega uma tesoura de papel e coloca entre as vértebras das asas de seu irmão, ela quer finalizar todo o show instalado, quer a normalidade de antes, de sua vida com sua mãe. De manhã escola e de noite jantar.    

A sinceridade de Ozon em relação aos sentimentos de Lisa é o que me tocou profundamente, os planos finais abandonam Ricky, uma questão de escolha inusitada. Lisa anda de moto abraçada com paco, seu "novo pai", enquanto de fundo toca a bela canção The Greatest de Cat Power (já conhecida da trilha de Um Beijo Roubado, de Wong Kar-Wai). Ela está feliz, com um lindo e leve sorriso... Seu irmão fugiu, não voltou mais.  

Mélusine Mayance se mostra uma das melhores atrizes mirins do cinema atual. Ricky foi o seu primeiro contato com a atuação, em seguida fez algumas séries de TV e atualmente pode ser vista nos cinemas novamente, com o filme A Chave de Sarah, de Gilles Paquet-Brenner. Mélusine Mayance doa grande parte da carga dramática para o filme de François Ozon, onde a mulher constrói gradativamente e pausadamente a sua importância nesse conto de horror, ao contrário dos outros de seus filmes, onde elas são de cara, a atração principal.

4 de dezembro de 2011

Só de Passagem

Por: Airton Rener

Uma canção, um poema, uma ilustração. Esses são os mais reverentes meios de conexão com o mundo transcendental das artes. Portanto citarei aqui os meios que mais me chamaram atenção nesses últimos dias de maneira desconjunta e às vezes incoerente.Recentemente assisti em um curto espaço de tempo “A árvore da vida” e “Melancolia” dos quais foram filmes que mais instigaram meus pensamentos esses dias. Embora as duas películas sejam de roteiro e direção muito distintas, elas se convergem em um único ponto ao relatar a efemeridade da vida e nossa relação microscópica com o universo. Paro, então, para questionar o tanto em que a linguagem é positiva para a humanidade, pois somos nada mais que animais falantes dos quais no fundo de cada um de nós cabe um instinto selvagem. Somos como animais qualquer cuja evolução nunca chegou ao homem, por mais que a literatura didática nos mostre uma visão antropocêntrica, vivemos apenas ilusões.

ILUSÕES

(poema dramático para muitas vozes)

I

is aqui o morto
chegado a bom porto

Eis aqui o morto
como um rei deposto

Eis aqui o morto
com seu terno curto

Eis aqui o morto
com seu corpo duro

Eis aqui o morto
enfim no seguro


II

De barba feita, cabelo penteado
jamais esteve tão bem arrumado

De camisa nova, gravata borboleta
parece até que vai para uma festa

No rosto calmo, um leve sorriso
nem parece aquele mais-morto-que-vivo

Imóvel e rijo assim como o vês
parece que nunca esteve tão feliz

III

Morava no Méier desde menino
Seu grande sonho era tocar violino

Fez o curso primário numa escola pública
quanto ao secundário resta muita dúvida

Aos treze anos já estava empregado
num escritório da rua do Senado

Quando o pai morreu criou os irmãos
Sempre foi um homem de bom coração

Começou contínuo e acabou funcionário
Sempre eficiente e cumpridor do horário

Gostou de Nezinha, de cabelos longos,
que um dia sumiu com um tal de Raimundo

Gostou de Esmeralda uma de olhos pretos
Ela nunca soube desse amor secreto

Endoidou de fato por Laura Marlene
que dormiu com todos menos com ele

Casou com Luísa, que morava longe,
não tinha olhos pretos nem cabelos longos

Apesar de tudo, foi bom pai de família
sua casa tinha uma boa mobília

Conversava pouco mas foi bom marido
Comprou televisão e um rádio transístor

Não foi carinhoso com a mulher e a filha
mas deixou para elas um seguro de vida

Morreu de repente ao chegar em casa
ainda com o terno puído que usava

Não saiu notícia em jornal algum
Foi apenas a morte de um homem comum

E porque ninguém noticiou o fato
Fazemos aqui este breve relato

IV

Não foi nada de mais, claro, o que aconteceu:
apenas um homem, igual aos outros, que morreu

Que nos importa agora se quando menino
O seu grande sonho foi tocar violino?

Que nos importa agora quando o vamos enterrar
se ele não teve sequer tempo de namorar?

Que nos importa agora quando tudo está findo
se um dia ele achou que o mar estava lindo?

Que nos importa agora se algum dia ele quis
Conhecer Nova York, Londres ou Paris?

Que nos importa agora se na mente confusa
ele às vezes pensava que a vida era injusta?

Agora está completo, já nada lhe falta:
nem Paris nem Londres nem os olhos de Esmeralda

V

Mas é preciso dizer que ele foi como um fio
d’água que não chegou a ser rio

Refletiu no seu curso o laranjal dourado
sem que nada desse ouro lhe fosse dado

Refletiu na sua pele o céu azul de outubro
e as esplendentes ruínas do crepúsculo

E agora, quando se vai perder no mar imenso,
tudo isso, nele, virou rigidez e silêncio:

toda palavra dita, toda palavra ouvida
todo riso adiado ou esperança escondida

toda fúria guardada, todo gesto detido
o orgulho humilhado, o carinho contido

o violino sonhado, as nuvens, a espuma
das nebulosas, a bomba nuclear
agora nele são coisa alguma

VI

Mas no fim do relato é preciso dizer
que esse morto não teve tempo de viver

Na verdade vendeu-se, não como Fausto, ao Cão:
vendeu sua vida aos seus irmãos

Na verdade vendeu-a, não como Fausto, a prazo:
vendeu-a à vista, ou melhor, deu-a adiantado

Na verdade vendeu-a, não como Fausto, caro:
vendeu-a barato e, mais, não lhe pagaram

VII

Enfim este é o morto
agora homem completo:
só carne e esqueleto

Enfim este é o morto
totalmente presente:
unha, cabelo, dente

Enfim este é o morto:
um anônimo brasileiro
do Rio de Janeiro
de quem nesta oportunidade
damos notícia à cidade


Ferreira Gullar, grande conterrâneo meu e notório personagem da literatura brasileira, expressa bem as desilusões de um homem que acaba por cair em anonimato com no poema acima; “Noticia da Morte de Alberto da Silva (poema dramático para muitas vozes)”. Percebe-se em suas obras uma forte influência de Machado principalmente do clássico romance “Memorias Póstumas de Brás Cubas” do qual, segundo a crítica, introduziu o realismo no Brasil no século XIX. O Realismo na minha concepção é um dos momentos mais cruciais da história literária brasileira, pois sua radicalização com o romantismo rumo à objetividade acaba ascendendo para o naturalismo, onde a ciência, o natural, “o selvagem” são valorizados com uma forte influência das teorias evolucionárias de Charles Darwin, a ciência e a literatura nunca estiveram tão próximas. No naturalismo a morte que para muitos é trágico e deprimente, para a natureza ela é necessária, é um simples processo biológico.

UMA IMAGEM



Eduardo Belga é filho de ortopedista e de uma servidora pública, o acesso aos livros de anatomia do pai e uma boa coletânea de filme de terror fizeram dele um dos ilustradores mais excepcionais da arte contemporânea brasileira. A maioria de duas obras exploram a fantasia, a violência e a anatomia humana, fazendo uma combinação quase que perfeita. "Invertendo o Da Vinci Invertido" é o nome da obra acima feito com grafite e ferrugem salivoso em 2005, o mecanismo do sexo visto esboçadamente choca o observador, a dramaticidade é expressada pelo contraste do preto e do branco com alguns traços que dão idéia de movimento, penetração. Esta é apenas uma das inúmeras obras de Belga que podem ser encontrada no seu álbum virtual no flickr clicando nesse link: http://www.flickr.com/photos/eduardobelga/. Eduardo Belga se graduou no Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB) onde aperfeiçoou suas incríveis ideias, sendo logo depois professor substituto entre 2005 e 2007, sortudos foram os alunos que estudaram com ele, ou não.

DESMATERIALIZANDO A MATÉRIA



(...) desmaterializando a obra de arte no fim do milênio/ faço um quadro com
moléculas de hidrogênio /fios de pentelho de um velho armênio / cuspe de mosca
pão dormido asa de barata torta /meu conceito parece à primeira vista /um
barrococó figurativo neo-expressionista /com pitadas de art-nouveau póssurrealista
/calcado na revalorização da natureza morta (...)



Um dos grandes cantores do atual movimento MPB, Zeca Baleiro, vem com uma bagagem mais do que "desmaterialista" em sua canção "Bienal" do qual talvez não seja tão popularmente conhecida como as badaladas "Telegrama" e "Flor da Pele", entretanto considero umas de suas melhores musicas composta por ele e interpretada por Zeca e Zé Ramalho. Com sua modéstia e inteligência, Zeca Baleiro critica o pós moderno nessa canção ao som de violão desprovido qualquer outro instrumento oq ue deixa a música com um tom mais poético. Baleiro fez essa canção inspirado Bienal Internacional de São Paulo de 1996, cujo tema era “A Desmaterialização da Obra de Arte no Fim do Milênio”. Em sua letra Zeca deixa sua percepção de arte contemporânea ao comparar "cuspe de mosca, pão dormido  e asa de barata torta" se a qualquer coisa que pode virar arte que chegue apenas a um  "resultado estético bacana". Zeca, ao contrário de muitos cantores da MPB, aborda uma temática diferente deixando seu ponto de vista em relação a arte pós moderna, ao mesmo tempo em que se mantém conservador. Falando em Zeca Baleiro e Bienal, Baleiro estará fazendo show em Brasília no dia 12 de dezembro nesse ano na abertura da 1º Bienal do Livro e da Leitura às 21h em frente ao Museu Nacional. (http://www2.uol.com.br/zecabaleiro/)

THE WICKER TREE - Trailer do reboot de O Homem de Palha


 Saiu essa semana o novo trailer de The Wicker Tree. O filme é uma espécie de reboot do seu antecessor, O Homem de Palha, de 1973, este que para mim é um dos melhores filmes já feitos! É um misto de um horror sedutor com canções que pontuam a trajetória do Sargento Howie (Edward Woodward), que busca uma garota desaparecida em uma ilha escocesa.

Em The Wicker Tree o roteiro se baseia  em um casal de cantores gospel do Texas que vão  pregar a palavra do Senhor da igreja Cowboys for Christ em uma pequena vila na Escócia. Aos poucos, o que parecia ser receptividade dos moradores se mostra o caminho para um misterioso ritual para entidades celtas.

A direção ainda permanece com Robin Hardy, diretor do original de 1973. Hardy havia sumido do ramo cinematográfico desde o lançamento de O Homem de Palha, nesse tempo dirigiu um longa desconhecido em 1983, The Fantasist, e algumas séries de TV e peças de teatro, este último é sua paixão, já que antes de dirigir sua obra “palhesca” ele já era um grande e conhecido diretor de teatro.

Vendo um pequeno documentário do DVD lançado pela falida (infelizmente) Dark Side, sobre a produção do filme de 1973, os produtores e atores afirmam que O Homem de Palha nasceu da tentativa de reinventar o gênero de horror europeu, que na época era dominada pela grande produtora Hammer, que hoje tenta reerguer o seu legado depois de muitos anos em decadência, exemplo é o nome e o envolvimento da produtora no remake americano de Deixe Ela Entrar, dirigido por Matt Reeves, de Cloverfield. É nesse impulso de mudança que Robin Hardy insere no roteiro números musicais e variados elementos semióticos que nos remetem ao ser sexual que é o homem (e as crianças principalmente!), são esses elementos que causam certa estranheza narrativa e que fazem com que o filme sirva de base para análises mais profundas, fato que era praticamente anulado pelo os filmes da Hammer na época, já que suas produções eram apenas para entreter o público passivo e arrecadar a quantia necessária de dinheiro na bilheteria. Mas assim como as chanchadas brasileiras, o público não caia mais nessa formula, ele amadureceu! Logo, os filmes e a produtora foram entrando em crise.

Só para constatar... Em 2006 foi feito uma refilmagem dirigida por Neil LaBute (O Vizinho e Morte no Funeral), aqui no Brasil se chamou O Sacrificio. Na produção o Sargento Howie é interpretado por Nicalas Cage, em uma das suas piores atuações. O filme foi um fracasso de crítica e público, realmente é terrível, e o motivo é obvio. Todo o caráter "evolucionista" da obra, como as cenas musicas e a referência sexual a flor da pele foram retiradas dessa nova versão, o que deixou o filme bobo e quase infantil, se aproximando mais uma vez dos filmes cansados da Hammer.

The Wicker Tree estréia em 27 de janeiro nos EUA. O mestre Christopher Lee volta a atuar na produção, só não se sabe se ele vai encenar o mesmo papel do primeiro, o de Lord Summerisle, uma espécie de mestre e ditador do povoado.

29 de novembro de 2011

III Festival Fronteira de Cinema


Bela arte conceitual do III Festival Fronteira de Cinema

A organização do III Festival Cinema da Fronteira acaba de divulgar a relação de curtas brasileiros selecionados para a edição que começa no próximo dia 10 em Bagé, prosseguindo até dia 17. E com grande felicidade que informo que dois de meus curtas, ABATE e YOU BITCH DIE!!!, foram selecionados para a mostra competitiva do festival. Ambos foram realizados de forma independente, assim como o meu novo projeto ainda em fase de pré-produção: O MEMBRO DECAÍDO. Curta que pretendo filmar no início de 2012.

A curadoria do Festival é assinada pela jornalista e realizadora Aurora Miranda Leão, contando com a colaboração de uma comissão artística formada por Carmem Barros, Eliane Pacheco, Fabiane Lázzaris, Lisandro Moura, Sandra Carmerine, Vera Medeiros e Zeca Brito, artistas de Bagé. No júri de seleção da mostra competitiva Binacional, os realizadores gaúchos Boca Migotto, Frederico Ruas, Mariana Xavier e Virgínia Simone. Ao todo, foram inscritos mais de 120 filmes.   
ABATE, de Lucas Sá
O Festival é uma Realização da Prefeitura Municipal de Bagé (RS), através da Secretaria de Cultura, o festival terá duas mostras competitivas – Bagé 200 anos e Mostra Binacional – e três mostras não competitivas – Yaya Vernieri, Festin Bagé – Mostra da Lusofonia, e Mostra de Longas-Metragens.

Os homenageados desta edição são o ensaísta, pesquisador e crítico Jean-Claude Bernadet, e a atriz e diretora Helena Ignêz, a grande musa do Cinema Marginal. Falando em Cinema Marginal, ocorrerá na programação a exibição do clássico deste movimento, o aclamado filme de Rogério Sganzerla, O BANDIDO DA LUZ VERMELHA.

Além das mostras, o festival apresenta uma programação paralela envolvendo shows, performance do grupo Falos e Stercus, apresentações ao ar livre, gastronomia e ações sócio-ambientais, estas  um dos carros-chefe do evento. Para a abertura, o tenor Flávio Leite irá cantar, ao lado do Coral Auxiliadora, a belíssima Missa Crioula de Ariel Ramirez, conduzida pelo bispo Dom Gilio Felicio.

Dentre os selecionados estão o curta Marcovaldo, de Cíntia Langie e Rafael Andreazz, que retrata a vida de um catador de lixo na noite pelotense. Além dos excelentes: O Cão (Abel Roland e Emiliano Cunha), Mato Alto - Pedra Por Pedra (Arthur Leite), Apenas Um (Leo Tabosa), e as animações O Céu no Andar de Baixo (Leonardo Cata Preta) e Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo (Rodrigo John). Este último ganhou o prêmio de melhor curta-metragem de ficção no 39º Festival de Cinema de Gramado.

Lista completa dos curtas selecionados:

- QUANDO A CASA CRESCE E CRIA LIMO, de Amanda Copstein e Filipe Matzembacher
- CÉU, INFERNO E OUTRAS PARTES DO CORPO, de Rodrigo Joh
Mato Alto
- CÉU NO ANDAR DE BAIXO, de Leonardo Cata Preta
- ABATE, de Lucas Sá
- MANTEGNA, de Meloo Viana
- CORNETEIRO NÃO SE MATA, de Pablo Muller 
-O SILÊNCIO DO TEMPO, de Andre Cohim 
- DOCE DE COCO, de Allan Deberton
- A FÁBULA DA CORRUPÇÃO, de Lisandro Santos
- BRECHA, de Júlia Araújo e Nathália D’Emery
- APENAS UM, de Leo Tabosa
O Cão
- UM CONTO à DERIVA, de Germano Oliveira 
- PRONTA ENTREGA, de André Miguéis
- TRAVESSIA, de Kennel Rógis
- POLIAMOR, de José Agripino
- MATO ALTO - PEDRA POR PEDRA, de Arthur Leite 
- AS FOLHAS, de Deleon Souto
- O CÃO, de Abel Roland e Emiliano Cunha 
- KINOPOÉTICAS KATARI KAMINA, de Pedro Dantas 
- SETE VOLTAS, de Rogério Nunes
Marcolvaldo
- TRAJETO, de Leonardo Wittmann  
- O OGRO, de Márcio Júnior e Márcia Deretti 
- O BRASIL DE PEDRO VAZ DE CAMINHA, de Bruno Laet
- MARCOVALDO, de Cíntia Langie e Rafael Andreazza 
- YOU BITCH DIE !!!, de Lucas Sá
- BILIU - O MAIOR CARREGO DO BRASIL, de Lau Barboza
- ANTONINHA, de Laércio Ferreira
- A INVASÃO DO ALEGRETE, de Diego Müller
- UMA, de Alexandre Barcellor
- ASFIXIA, de Fábio Aguiar

27 de novembro de 2011

O Monstro - Anamorfose Cronotópica

Hoje se tem o estudo do tempo no cinema mais focado na forma de duração numérica, ou seja, o tamanho dos planos em relação à montagem. Filmes como o brasileiro Ainda Orangotangos (2007) e o russo Arca Russa (2002), de Gustavo Spolidoro e Russki Kovtcheg, são sublimes exemplos dessa utilização do tempo no cinema contemporâneo. Esses dois longas se submetem em filmar a ação de forma continua sem pausas na gravação, buscando um plano sequência que torne a narrativa completa e verossímil ao seu tempo, o tempo real. Essas façanhas técnicas, o plano único, só foram possíveis com o advento das câmeras digitais, que permitem a gravação de horas em uma única fita ou arquivo, sem a necessidade de constantes interrupções como ocorre na película. A capacidade móvel e peso leve das novas câmera digitais permitiu que diretores pudessem inovar nos movimentos de câmera e nas viagens pelo o espaço cênico serem mais viáveis em relação a parafernália de equipamentos utilizados nas filmagens em película (tiro dessa afirmação Irreversível, de Gaspar Noé, que mesmo com a filmagem clássica conseguiu movimentos de câmera e tempos bem mais elaborados e impactantes), fato que prejudicou bastante a idéia original de Festim Diabólico (1948), de Hitchcock, já que o que era para ser um único plano sequência se tornou 8 longos planos invisíveis, pois as bobinas de película da época só filmavam 10 minutos no máximo. 

O tempo nesses filmes, assim como em A Casa Muda (2010), filme de horror uruguaio, estão para a afirmação fiel do tempo em relação à ação, é o tempo se submetendo a imagem. Assim, no cinema atual, o que interessa mais é a possibilidade de um maior realismo e diminuição da técnica da montagem para torna a experiência fílmica mais intimista e acreditável para o espectador, como nos longos planos das obras de Michael Haneke e em Mãe e Filha (2011), de Petrus Cariry. Indo contra essa corrente, a do tempo se submetendo a imagem, existe o estudo e a prática da deformação da imagem sendo mediada pelo tempo, ou seja, o rastro do tempo se dilatando na imagem seja fixo ou em movimento. O caráter desse olhar é da criação de distorções, criando uma verdadeira indústria de monstros e aberrações visuais. 

A este tipo de formação de imagem, o teórico e estudioso brasileiro Arlindo Machado a chamou de: Anamorfose Cronotópica. Classificação que estuda a deformação e mudança (anamorfose) no espaço e no tempo (cronotópica). Essa analise precisa da passagem temporal vem desde o Renascimento, onde a burguesia da época almejava o que há de mais real e cientificamente correto possível. É a partir desse desejo que se iniciam os experimentos da imagem que levaram o desenvolvimento da arte cinematográfica, como o estudo do movimento das patas do cavalo pelo fotógrafo Eadweard J. Muybridge, onde ele queria provar por meio de doze, depois vinte quatro e depois trinta câmeras que tiravam fotos sucessivas, que as quatro patas de um cavalo, em um dado momento, se mantinham no ar sem tocar a terra. E conseguiu! Outro que seguindo o seu antecessor se interessou pelo movimento das coisas naturais foi Étienne-Jules Marey, que no ano de 1882 cria o chamado "fuzil fotográfico", aparelho (em formato de arma) que capta inúmeros instantes da imagem em curtos intervalos de tempo. A grande diferença de Marey para Muybridge, é que o seu invento incorporava todos os instantes em um mesmo suporte físico, logo as imagens se fundem uma sobre as outras sendo possível analisar a passagem e o movimento do corpo em um único plano. Algo bem semelhante ao efeito que é utilizado nas provas de ginástica olímpicas transmitidas na TV. Assim, a percepção do tempo na imagem começa a ser visível, pois está indica o trajeto da imagem em um determinado intervalo de tempo, deformando o natural, o que ocasiona a anamorfose. 

Na fotografia, esse modo de controlar a passagem do tempo na imagem, é realizado a partir do tempo de abertura do obturador. Quanto maior o tempo de abertura, maior será a deformação da imagem em relação ao movimento. Este efeito incrusta na imagem rastros de ações, que começou a ser utilizado por artistas plásticos, como nas pinturas futuristas, onde o rastro passou a indicar movimento acelerado de máquinas industriais. Essa afirmação pode ser percebida na obra Dinamismo de Um Cão na Coleira (1912 - Óleo sobre tela, 89.9 x 109.9cm), de Giacomo Balla. A obra indica uma anotação do movimento das patas e do rabo de um cão, além das pernas de seu dono, que pela a imagem, mesmo sem a presença da máquina que é figura típica das obras futuristas, percebemos o dinamismo e a aceleração do homem moderno.  
Seguindo o desenvolvimento, ainda que contrário ao ideal científico e observatório das criações de Muybridge e Marey, o cinema surge. Mas a sua forma de projeção não instiga a percepção visual da trajetória do movimento, pois este movimento é originalmente falso, criado por sucessivas trajetórias de vinte quatro quadros fotográficos fixos por segundos. Logo, Arlindo Machado afirma no texto Anamorfose Cronotópicas ou a Quarta Dimensão da Imagem, que "a inscrição do tempo no cinema não afeta as imagens, não as transfiguram, não gera portanto anamorfoses" (MACHADO, 2004, p. 101). As imagens cinematográficas são intercaladas por invisíveis intervalos negros entre um quadro fixo e outro, gerando uma ilusão de movimento e continuidade, chamado de efeito Phi, que só é possível pela forma como o olho humano recebe em sua retina esse falso movimento. 

Em contrapartida, a imagem eletrônica é fruto de um maior experimentalismo em relação ao tempo-espaço. Sua natureza digital é própria de um meio intocável e extremamente maleável, o que torna a sua utilização mais inventiva sob a distorção da imagem. A forma como o vídeo é gerado, a partir das linhas que através do processo de varredura são intercaladas, indica que está matéria é própria da anamorfose cronotópica, pois sua produção é um único conglomerado de números exatamente calculados, onde cada linha, que será intercalada pela varredura brevemente, indica um intervalo de tempo diferenciado. Em câmeras de vídeo mais antigas, como as de tubo, pode se perceber um atraso dessa varredura, sobretudo quando estas imprimem um movimento em relação às luzes, onde se enxerga um rastro de luz na imagem que persiste por algum tempo. Assim, esse rastro adquire uma espécie de memória do tempo.

O melhor exemplo de analisar a anamorfose no vídeo é através do experimento, The Fourth Dimension (1988), do polonês Zbigniew Rybczynski (um dos escritores e fotógrafos do bizarro filme Angst). Rybczinski idealizou um software que promove a imagem eletrônica com pequenos atrasos na varredura, diferenciando o tempo de cada linha horizontal do vídeo frame a frame. Assim, a imagem que se movimenta adquire uma deformação quase extraterrestre, pois a varredura atrasada cria certos rastros orgânicos na forma. Veja este experimento seguindo a mesma estética de Rybczynski, http://vimeo.com/1163538, produzido por André Mintz e Pedro Veneroso, os mineiros que idealizaram o Marginalia Project (http://marginalia-project.blogspot.com/), grupo que busca promover arte tecnológica.

THE FOURTH DIMENSION, de Zbigniew Rybczynski

22 de novembro de 2011

O Roteiro Efêmero

A produção de uma obra cinematográfica carrega inúmeros e variáveis departamentos específicos. A trajetória do fazer fílmico inicialmente não se instala nas grandes proporções humanas e variados técnicos, como ocorre no momento de iniciar as gravações, que vai desde o set de filmagem, montagem, distribuição,  telas dos cinemas e chegada do produto nas prateleiras das vídeos locadoras. O início, o ponto de partida, se desenvolve de uma idéia, mesmo que bem pequena. É a idéia a ação primordial para um encadeamento de pensamentos calculados que vão se moldando e criando formas, assim, o que era apenas um homem caminhando sob uma ponte tentando se matar, acaba se transformando em um grandiloquente filme dramático sobre a questão da  fraca existência humana em uma grande cidade como Nova York. Esse homem passa a ter nome, família, emprego, perde o emprego, se envolve em um manifesto contra a prisão claustrofóbica do governo coreano, é preso, sai da prisão, e por fim faz um grande espetáculo final para que sua voz seja ouvida ao alto da ponte que liga o distrito de Manhattan com o Brooklin. Esse bobo exemplo mostra o desenvolvimento de uma idéia extremamente objetiva em algo que consequentemente, pela a persistência da mente, se transforma em um bolo de ações e situações que precisam ser moldados e trabalhados dramaticamente, sobretudo narrativamente, pelo o profissional da "escrita do cinema", no caso, o roteirista. O grande solitário coletivo das idéias.  

O material físico do roteiro, ou seja, os papéis com cenas e diálogos do produto, são apenas palavras almejando serem imagens. Logo, não se permite que linhas e letras falem mais que o visual, uma questão bem discutida entre escritores em geral: o roteiro como literatura. A confusão deve se limitar na objetividade da imagem, se deleitar sob ela e não se entregar as emoções e sentimentos humanos, típicos dos romances clássicos. O ato da escrita deste tipo de texto torna o próprio roteirista mais frio em relação aos sentimentos subjetivos dos personagens e situações, claro, ele deve se apegar sempre a transpor esse sentimento obscuro do texto na imagem, tornando o ator e o seu espaço cênico o guia da subjetividade. Logo, o valor semiótico e observativo da figura do roteirista deve se espalhar como virose no papel. 

O caráter frio e seco da leitura do roteiro é um fato que intriga vários escritores e os próprios leitores, que o julgam previamente como um texto sem emoção. A diferenciação da ARTE do cinema para a do roteiro é um dos motivos dessa frieza incrustada no texto, pois a FORMA acaba englobando a ARTE, algo que torna a linguagem do roteiro restrita a aquele ambiente de uso, a dos produtores e demais profissionais. Assim o texto se desenvolve a partir de etapas temporais, no caso as cenas, que são organizadas mediante a ação da trama central. É essa organização que propõem a está linguagem um caráter rigorosamente técnico que uni duas vertentes opostas, a palavra com a imagem, controladas pela figura do roteirista que  além de um bom escrito  deve ser também um bom cineasta. A técnica não se adquire sem conhecer em detalhes o seu meio de pulsação, ou seja, o  bom e organizado roteirista deve ao menos se entender com as técnicas básicas do cinema, como o comportamento dos atores frente a câmera, enquadramento do espaço, e o mais importante, a montagem. O roteirista Jean-Claude Carriére, que já trabalhou em inúmeros projetos com o diretor surrealista Luis Buñuel, como em O Discreto Charme da Burguesia (1972) e Esse Obscuro Objeto do Desejo (1977), no livro Prática do Roteiro Cinematográfico, afirma que "o roteirista é - por necessidade, se não por gosto - muito mais um cineasta do que um escritor" (CARRIÉRE, 1990, p. 12).  

Essa indagação demonstra a importância do domínio da técnica para se produzir um produto cinematográfico, esse domínio deve se manter desde sua origem,  a  "idéia" de partida que citei anteriormente, pois é a partir do roteiro sonhador (como muitos teóricos o chamam) é que a equipe terá contato com o que pode se tornar uma imagem final. A profundidade de interesse do cinema em relação ao roteirista é de certa maneira estranha, pois este geralmente é isolado do resto do grupo ativo de produção quando se inicia as filmagens, raramente o roteirista participar assiduamente a todas as etapas de produção de um longa, pois como é o ponto de partida e sua função é limitada ao papel, que é maleável e móvel, a sua participação se torna quase invisível quanto figura física no set. O próprio Carriére afirma haver de fato um distanciamento do roteirista com as demais etapas de produção,  mas em seu caso, no início de sua carreira, foi diferente. Jacques Tati, com quem trabalhou a principio, o obrigou a sentar frente a montadora de seus filmes, Suzanne Baron, e ao seu lado tinha os roteiros dos filmes enquanto exibia as obras, o objetivo era analisar o roteiro e o filme, mais precisamente o corte, o que sai daqui e vai para ali, a manhã que se torna noite, o ano que é décadas. Assim, esse “exercício”, palavra chave para os roteiristas, é uma forma de perceber o cinema como forma e linguagem, se influenciando e se inspirando por ela.

O que Jacques Tati lhe propões é treinar o olhar do leigo para um desenvolvimento interno do roteirista, lhe indicando a idéia de tempo e sucessão de planos para que sua escrita, ainda prematura, se posicione de acordo com o filme, com a imagem. Assim, com essas técnicas temporais e rítmicas adquiridas, o roteirista passa a importar o corte invisível em sua escrita, propondo direcionamentos a decupagem e a montagem, passando a ser o "primeiro" montador do filme, pois este serve como um guia para a montagem. Este plano sai deste que vai para este, daquele para o outro. Esse contato direto comporta uma vertente ainda mais pessoal, o treino de um olhar sensível e sofisticado para a arte cinematográfica, gerando um apelo estético e conceitual mais abrangente, que além dessa forma, a do laço entre roteirista e produção, é possível ser exercitada (mas uma vez a palavra chave) vendo muitos e diferenciados gêneros de filmes. É plausível também que este saiba ter noções de orçamento, para que as ações do roteiro, e de sua criação pessoal, não extrapolem o provável em relação ao modo de produção, o orçamento. 

Implementando a questão da união das equipes, o roteiro não é algo fixo em uma só unidade, a variadas formas de escrevê-lo captando quesitos de pontos de vistas variados, que por fim formam apenas uma só corrente. Seguindo o padrão europeu de se fazer cinema, ou seja, a busca de todas as unidades de produção unidas intimamente com o diretor da obra (o que é bem diferente na indústria hollywoodiana), o roteiro pode ser desenvolvido por grupos, como o produtor e o roteirista, sendo que na maioria das vezes essa fórmula visa, sobretudo, a grande bilheteria. Neste caso, o produtor entrega a "idéia" ou um breve argumento para o roteirista, escolhido por seu gosto em relação seu potencial e domínio do gênero sugerido. A partir dai o roteirista tem períodos de revisões, que faz juntamente com o produtor para a aprovação do andamento, e prazos específicos para a entrega finalizada do tratamento do roteiro. Geralmente isso ocorre ao contrário quando o roteirista trabalha por si só, sem previsões e grupos, mas é um risco que corre, pois o escrever "por conta própria" pode muitas vezes significar a não feitura do filme, caso não encontre produtoras interessadas em comprar os direitos do roteiro.  

A parceria, diretor e roteirista, é de fato a mais interessante das formas de escrita de um roteiro, pois o encontro de ambos instaura olhares que se complementam por si, o lado visual da direção e a criatividade e montagem intuitiva do roteiro. Isso oferece um controle maior por parte de ambos na produção e filmagem, já que é comum o diretor (e até mesmo os roteiristas) não compreender ou negar o clima que o filme precisa, ocorrendo até mesmo a exclusão de cenas decisivas durante o processo.  

Mas se  for analisado o roteirista como um profissional único que trabalha só em seu roteiro, sem a parceria de produtores, diretores e outros roteiristas, a tendência é intuitivamente perceber que este profissional nunca trabalha só, em nenhum momento. Ele capta constantemente informações do exterior ao seu redor, das pessoas que o circundam, das conversas nos ônibus, das fofocas da fila do supermercado, e assim vai.

O roteirista primeiro escuta os outros para em seguida usá-los.  


Referências e Fontes:  
CARRIÉRE, Jean-Claude / BONITZER, Pascal. Tradução de Teresa de Almeida, Prática do Roteiro Cinematográfico. 1. Ed. São Paulo: JSN Ed., 1996 
CARRIERE, Jean-Claude, A Linguagem Secreta do Cinema, 1.Ed. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira. 2006s