10 de maio de 2011

Cinema: A Anatomia do Tempo

Por: Lucas Sá

O cinema e o seu nascimento técnico apresado foram capazes de criar não só aparatos que desenvolvessem o seu realismo físico, mas também o seu realismo narrativo. Dentro deste contexto, temos a relação íntima da decorrência de um momento aliado à narrativa, no caso, o tempo. Esse elemento é um dos aspectos básicos para se ter um roteiro bem desenvolvido dentro de sua proposta. Roteiro e tempo estão sempre se apoiando um no outro para dar uma sensação de equilíbrio aparente entre ficção de realidade, o que proporciona um fluxo natural da ação, dando oportunidades de continuidade para o desenvolvimento de constantes ações. Mas o que está além de ambos é uma operação mais maquinal capaz de controlar ao seu modo, como uma marionete, esse tempo, a operação em questão é a montagem ou edição. É na montagem que o filme ganha "corpo" e capacidade de revelar algo que só existia no imaginário do objeto, a película ou o vídeo, mesmo que o fechamento do ciclo do imaginário fílmico acabe apenas com o próprio espectador na sala do cinema. Sendo este também de extrema importância para o comprometimento racional do olho com o tempo, mas isso falarei adiante. Assim, a montagem é etapa onde o filme apresenta a maior mobilidade para com o tempo, é o corte de uma cena unida a outra que nos dão um sentimento de um "apagamento" de parte de um tempo real, que no filme se comporta de maneira sugestiva, mas sempre tentando se posicionar como verídica, como natural.

Essas uniões de cenas permitem que o filme esteja em constante ação, ou movimento, dando-nos uma percepção de que aquele momento sofreu variações. Um exemplo clássico e incrível da transição por meio de corte pode se analisada no filme 2001 – Uma odisséia no espaço, dirigido por Stanley Kubrick. Em 2001, há um prólogo de introdução sobre a origem dos homens, nós como macacos primitivos, seguindo a teoria evolucionista de Darwin. Em uma dessas cenas, um macaco (homem) começa a debater um pedaço de osso animal sobre outros ossos, esses começam a se espalhar, mas um, com a batida, é lançado para o alto que em seguida, por meio da montagem, ocorre um corte seco deste osso no ar para o sistema planetário com uma enorme nave voando pelo o universo, ou seja, Kubrick, através de um único corte de cena, avançou milhões de anos, uma cena belíssima. Da pré-história passamos para o ano 2001, como se explica isso? Um piscar de olhos e já somos transportados para outra realidade e sociedade, totalmente distinta da anterior, e para isso foi preciso de um corte, apenas um corte, no lugar preciso e na hora certa. Assim, o espectador que é acostumado com um tempo sempre linear e cronológico, recebe um baque visual e racional, e um salto no tempo. E se essa constante relação de tempo fizer com que nós perdêssemos a identidade do tempo? Confesso que essa montagem, que torna o tempo invisível, sendo este o seu papel, é algo que embaralha nossa noção natural das coisas, de 1960 estamos em 2010, da França revolucionária já estamos em Paris em um desfile, do Brasil escravocrata estamos no Rio de Janeiro com policiais armados com coletes com símbolo de caveira. Essa velocidade era mais embaraçosa no início da arte cinematográfica, onde o público, que trazia ainda noções narrativas do teatro clássico do século XIX, não compreendia bem a lógica temporal no cinema, logo é a gramática da linguagem fílmica de Griffith que introduz essa noção de tempo/ação, extinguindo o primeiro cinema, tão característico dos irmãos Lumière. É esse decorrer ágil de instantes, que é embalado pela natureza da origem fílmica, a Revolução Industrial, é que nos coloca em uma posição de quase "descontrole" e até mesmo de certo "desapego" com a atenção na transição temporal, nos fazendo perder uma percepção natural da trajetória no tempo. Do Brasil escravocrata já estamos no Rio de Janeiro contemporâneo, ok, mas e o que ocorreu durante todo esse tempo vago até chegar ao tempo "moderno"? As revoluções e as lutas e as mulher conquistando o voto? As pessoas confundem os tempos e passam a desprezá-lo, de 1970 a 2011 não significa nada, claro no filme é fácil, mas por que é fácil?

A montagem, como já disse, nos guia por esse túnel do tempo, é esse seu dever, unir os fatos até se tornarem aceitáveis ao público. Mas o que nos faz compreender esses avanços, não é só os cortes e justaposições da edição, mas também elementos da imagem que são característicos de determinada época ou ação. No filme Quanto Vale ou é Por Quilo? (2005), do diretor Sérgio Bianchi, é sempre o tempo que conduz a narrativa, ele brinca com o espectador em todo momento, e chega em certas vezes a ser irônico. Bianchi, neste filme, que mixa a ficção com o documentário moderno, rompe a linha da narrativa linear para dar certo caos no roteiro e nos personagens, que estão sempre relacionados entre si, mesmo que haja um grande período que os separem. Em Quanto Vale ou é Por Quilo? Não é só a montagem que nos permite passar de um lado para o outro no tempo, mas também a cenografia e os objetos em quadro. Logo, são as roupas dos senhores de engenhos, o cabelo da secretária publicitária, a maquiagem da atriz de um comercial e as cicatrizes na pele de uma escrava, é que também nos permite que nossa razão adentre nessa "impressão do real" proposta pela montagem, nesta farsa de uma realidade temporal que já é passado, algo que só persiste em nossas lembranças e que são estimuladas apenas por elas, sendo a memória do espectador um guia por esse meio, assim, sem a memória e a imaginação, o tempo fílmico não seria absorvido, e os próprios filmes seriam apenas alegorias passageiras que não seriam compreendidas, algo como cenas desorganizadas de um cotidiano qualquer em uma tela. Sobretudo, é o diretor de arte junto com um pesquisador e o figurinista, claro, seguindo as premissas do diretor, que irão incorporar essa realidade a determinado momento. Imagine um filme como Calígula (1979), de Tinto Brass, com ausência ou descuido nas roupas características do período romano pagão e nos objetos de cena, mesmo que por vezes estes sejam representados de forma fálica? A suposta intenção de inserir o espectador nesta realidade seria anulada por completo, ocorrendo uma quebra da ilusão. Mas não é só de uma grande escala de tempo ou de países que essa diferença visual pode ser notada, em filmes atuais que se passam no tempo do "hoje" isso também é relevante, já que é a noção comum que grande maioria do público tem maior domínio. Jean-Claude Carrière em seu livro, A Linguagem Secreta do Cinema, afirma que não é só o presente representando o passado, mas também que cada presente representa o seu próprio passado, ou seja, em 1979, ano de produção de Calígula, o passado é representado pela visão do final dos anos setenta, logo, se este mesmo filme fosse refeito em 2011 a sua postura estética seria deformada em relação a versão original. Fato que pode ser analisado no filme Fúria de Titãs (1981), de Desmond Davis, em relação a sua refilmagem de 2010, dirigida por Louis Leterrier. As técnicas de realização, sobretudo os efeitos digitais e especiais, sofrem uma grande divergência, a versão original utiliza as técnicas de stop motion para animar seus monstros e deuses, já na versão atual, o CGI reina de forma absoluta, além de o figurino ser bem mais trabalhado e detalhado. É importante ressaltar que esse cuidado não auxilia só o tempo e a montagem, mas também os atores, que se sentem mais confortáveis e confiantes no seu personagem.
O tempo é o ritmo do cinema, assim como a vírgula é para o texto. A dinâmica das ações são medidas com precisão pelo tempo, que no cinema pode ser chamado de ritmo, ou aproximação de um tom. O que seria de Hitchcock sem o tempo fílmico para exaltar a tensão de um assassinato? E de Antonioni sem seus planos sequências que tentam captar o instante sem trucagens? A variação temporal da cena são aparatos fundamentais para o bom funcionamento da narrativa, e da proposta do roteiro. O cinema é uma janela que vária o tempo, alongando-o, como no caso da famosa cena da escadaria de Odessa em O Encouraçado Potenkim de Eisenstein, ou encurtando-o, como no caso das ações suprimidas de determinados personagens; ele está trocando de roupa e de repente já está no trabalho de paletó. O cinema pode até mesmo repetir variadas vezes o mesmo tempo, viajando sobre este presente/passado que persiste em voltar, como no caso de Corra, Lola, Corra (1998), Elefante (2003) e Amores Brutos (2000), onde o tempo se entrelaça e revela o caminho de cada pessoa. Em Corra, Lola, Corra pode se notar até o futuro de determinados coadjuvantes, em flashes frenéticos, que esbarram no caminho da protagonista. Neste mesmo filme o ritmo e a ação são aceleradissimos, quase deixando o espectador sem fôlego por imagens seguidas que jogam informações a todo instante. Assim, por esse aceleramento, é que o tempo revela seu dom de "sentimento", sobretudo por meio da famosa justaposição de cenas e planos já comentados na montagem. Os diretores utilizam uma união de tempo e narrativa, moldando o seu filme de acordo com suas intenções, em Corra, Lola, Corra o ritmo é maquinal e acelerado se assemelhando aos filmes da Nouvelle Vague, logo não faria sentido uma pessoa correndo atrás de uma grande quantia de dinheiro em um ritmo lento e arrastado, isso não passaria a emoção da busca. Já em Dentes Caninos (2009), de Giorgos Lanthimos, a relação do tempo e ação é amenizada, tornando a narrativa lenta, a ponto de se ter uma câmera fixa e documental que registra os personagens e suas ações sem interferir no espaço. Os irmãos de Dentes Caninos não tem contato com o universo externo da sua casa, logo seu cotidiano é monótono e sem ares animados, até as cores do filme são neutras, tudo isso caminhando para afirmar a proposta de Lanthimos, mostra esses adultos/crianças em um ambiente de isolamento, sem vida, sem perturbações emocionais. Há também filmes onde o tempo é o mesmo, mas sofrendo variações apenas espaciais, se tornando diferente dá repetição do mesmo tempo como em Elefante. Um filme que considero a melhor aula de manipulação do instante fílmico é Os Olhos da Cidade são Meus (1987), de Bigas Luna. No longa de horror espanhol o tempo é o mesmo, sendo que este ao longo da exibição se revela uma extensão de outro tempo incluído em outro espaço. É um filme, dentro de um, que inclui o próprio espectador nesse ambiente, caso estivéssemos vendo o filme em uma sala de cinema tradicional. Logo, seriam três extensões de tempo e espaço, ou seja, o filme sendo visto em três cinemas seguidos. Um mesmo tempo variado pelo espaço.

Um diretor contemporâneo que utiliza o tempo com maestria é o chinês Wonk Kar-Wai. Por muitos anos o uso da câmera lenta foi se tornando defasado e antiquado, sendo algo apenas para embelezar a cena no sentido estético, não que isso seja ruim, mas isso banaliza o efeito. Kar-Wai é um dos poucos que viram que esse artifício além de embelezar a cena pode servir como um realce da narrativa. A câmera lenta de Kar-Wai busca um momento chave e imperceptível, algo que nunca retornara das cinzas do passado, é o instante como resgate de uma imagem quase fotogênica da ação. Nesse cinema o que importa são os pequenos detalhes de prazer visual e emocional da personagem, como em Amor À Flor da Pele (2000), onde a protagonista todas as noites vai comprar comida chinesa na barraquinha perto de seu prédio, ou em Um Beijo Roubado (2007) quando Jude Law beija Norah Jones sob o balcão de uma lanchonete. É a extensão do tempo como apego a memória, o prazer no instante do instante.

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