15 de setembro de 2011

Cinema, Vídeo, Godard... TV, Dubois, Haneke e Tracey

Por: Lucas Sá

A natureza videográfica é incompreendida por meio de sua vasta mobilidade de uso e possibilidades transformadoras, pelo seu estado mecânico e computadorizado, que o torna uma imagem ainda mais subjetiva e invisível, quase intocável fisicamente. O vídeo é temido por grande parte da indústria cinematográfica, por ser um meio alegórico e de entretenimento barato, chegam até mesmo duvidar se o vídeo se enquadra no estreito e mesquinho padrão do que chamam de arte. Em seu lançamento, como alternativa de se fazer imagens em movimento tendo princípios digitais, o vídeo foi incorporado e ovacionado por vastos teóricos e especialistas do meio, pois viam no vídeo a oportunidade de se fazer verdadeiras pinturas móveis, o que o torna mais adequado ao ambiente de museus e galerias de arte. Fato curioso, já que se percebe nos anos 70 até final dos anos 90, uma verdadeira aversão a essa nova forma de imagem, receio que não se incorporou de imediato entre os artistas e teóricos. Foi a fagocitose frenética da TV sob o meio videográfico que tornou a sua feitura e visualização algo ofensivo para o cinema, transformando-o em algo gratuito e instantâneo, algo passageiro, efêmero. Pode ser tomado como exemplo os telejornais, que iniciam com filmagens de suas reportagens em película (propriedade do cinema) 16 ou 8 mm, e em seguida com o aparecimento do vídeo, essas mesmas reportagens se ajoelham pela a imagem digital e heterogênea (propriedade do vídeo). A filmagem em 16 e 8 mm não nega o apego televisivo de uma imagem barata e mais instantânea, sendo o vídeo a alternativa mais plausível e viável, já que nele encontram a mobilidade das câmeras e da imagem, o que ao contrário do cinema, é barata. Assim, pode ser feita uma relação desse pensamento, a de que o vídeo é menor do que o cinema, da mesma forma que o cinema foi visto injustamente pelo teatro como uma arte inferior e precária em sua linguagem.

Mas o que torna o vídeo tão divergente do cinema? Ambos são frutos de uma efervescência industrial que almeja cada vez mais novidades constantes e reais, mas seu comportamento, tanto visual quanto mecânico, é específico em cada meio, mesmo que ambos resultem plenamente em imagens móveis. O vídeo se apega dos termos e técnicas que já existiam no cinema e que pouco a pouco foram sendo criados por teóricos, entre eles, Eisenstein e Kuleshov. A idéia de plano, decupagem, corte, espaço off e montagem, foi se expandido nas áreas midiáticas e se tornando erroneamente universal. Esse apego surge de uma dúvida em relação o que se fazer com o vídeo, o cinema já existia, já tinha sua linguagem concreta, como também essa mesma linguagem rompida e inovada, com os jovens e cientistas da imagem da Nouvelle Vague. Logo os termos foram se implementando no ainda inconcreto sistema de imagem digital sem se questionar se esse grupo de palavras tornaria o seu significado correto e equivalente ao do cinema. Tratando o vídeo como cinema, e o cinema como vídeo. Claro, foi uma relação imposta, já que os dois promovem um mesmo produto, o de imagens em movimento. Se voltarmos a essa relação conturbada de ambos os meios, o cinema se insere em um abismo entre sua revolução e ao mesmo tempo a sua queda, isso para muito teóricos, como Jean Claude Carriere, pois é a forma de ver o vídeo que antipatiza seu caráter fixo de imagem artística, o de "o vídeo querendo ser cinema", além da falta de um estudo e embasamento científico mais próprio e íntimo na área. O contexto das palavras anteriores são implementadas e sintetizadas por Philippe Dubois em seu livro Cinema, Vídeo, Godard, quando este afirma que o vídeo "constitui, portanto, um pequeno objeto, flutuante, mal determinado, que não tem por trás de si uma verdadeira e ampla tradição de pesquisa. E é precisamente por isto que nos parece útil e interessante examinar tal coisa, reveladora à sua maneira, discreta e circunscrita, de problemas que só foram crescer com o desenvolvimento das tecnologias informáticas. A problemática do vídeo conduz de fato à questão mesma dos desafios da tecnologia no mundo das artes da imagem" (DUBOIS, 2004, p. 69 e 70).

A noção de termos específicos do cinema não pode e não deve ser compreendida na mesma equivalência ao vídeo. As especificidades da imagem digital o tornam como uma massa heterogênea, ou seja, o vídeo apresenta uma maior flexibilidade e facilidade de intervenção. É nessa heterogeneidade que esse meio se confronta com o cinema, que é estático e de certa forma homogêneo em relação as possibilidades de rompimento. Em sua trajetória, o cinema, se impregna do clássico, do linear, da clareza visual e narrativa. Já o vídeo, por meio de experimentações (palavra que cada vez mais se aproxima da imagem digital) de artista e cineastas curiosos, como o japonês-americano Nam June Paik, transformaram essa tela conformada em quadros gradativamente pirotécnicos, permitindo assim o manuseio e o controle absoluto da imagem. A idéia de profundidade de campo no vídeo, que para o teórico francês André Bazin, é a técnica mais sofisticada e realista da arte cinematográfica, perde o seu significado clássico, o de espaços formados por lugares físicos que nos dão uma fuga no olhar, pois o vídeo permite ao artista a constituição de incrustações na imagem, algo como a retirada de uma cor que forma um buraco preenchível na imagem, onde esse "buraco midiático" é preenchido por um outro vídeo através do Chroma Key . É essa sobreposição e fusão de imagens que dão ao vídeo uma tendência irreverente ao conceito natural de profundidade de campo, dando um aspecto de espessura, de volume e camadas a essa imagem. Logo, o plano unitário no vídeo é um conjunto de diferentes planos, ou seja, uma composição. Sobre esse conjunto visual e orgânico, Philippe Dubois afirma que "em vídeo, tudo provavelmente não passa de imagem, mas todas estas imagens são matérias" (DUBOIS, 2004, p. 89).
É essa materialidade que confronta outra idéia básica do cinema, a decupagem, e consequentimente o que se conhece por plano. A divisão e organização de cenas em uma tela antes da imagem digital era linear, prezando pela clareza a favor da narrativa, do racional. Entretanto, a organicidade do vídeo permitiu que planos únicos se sobreponham em uma mesma tela, e até mesmo que se incorporem uma na outra, dentro da outra. São imagens antes solitárias que dividem um mesmo espaço em conjunto, derrubando a lei de Newton de que dois corpos não ocupam uma mesma área. Como proceder e decupar esse plano dentro do plano? O vídeo embaralha essa regra metódica e se orgulha disso, um exemplo é o filme Os Fragmentos de Tracey, de 2007, dirigido pelo canadense Bruce McDonald. A estética visual do filme é baseada nos fragmentos de uma período conturbado da vida de uma adolescente de 17 anos, Tracey, interpretada pela talentosa Ellen Page. São esses pedaços de uma mente efêmera e juvenil que acabam interferindo não só no emocional da personagem, mas como também na imagem em que o espectador visualiza do universo caótico em que essa adolescente vive, e é a tela unitária que recebe essa carga de fragmentação, onde o que se vê são inúmeros cortes e imagens geométricas que ocupam o mesmo espaço, detalhes e ações em conjunto, mas ao mesmo tempo separadas em uma mesma área retangular. Veja uma cena do filme neste link: http://www.youtube.com/watch?v=TilubjW-eCE. Outro que se apropria do vídeo como camadas é o incompreendido House, filme japonês do diretor Nobuhiko Ohbayashi. Este se volta mais para o uso psicodélico e caleidoscópico da imagem digital, o roteiro pouco importa no filme de Nabuhiko, sendo uma fábula de terror com um humor negro afetado. Em certas cenas macabras o corpo dos atores é retirado por meio do uso do chroma key (geralmente azul ou verde), restando o que realmente importa para a cena, um braço arrancando, uma cabeça zumbi que morde as nádegas de uma bela jovem , ou até mesmo cotocos de dedos tocando piano. Uma das cenas significativas de House, de Nobuhiko Ohbayashi: http://www.youtube.com/watch?v=xOBCMoDGGZU.

O vídeo quando usado em sua forma original e pura, sem trucagens e fusões, é o que a imagem pode nos dar de mais real possível. Quando implementados, esses elementos (sobreposições, incrustações e janelas) é o que de mais plástico e falso pode nos oferecer. Mas é claro, dependendo do seu uso estilístico e sofisticação técnica. Não é atoa que câmeras filmadoras digitais são constantemente utilizadas na realização de documentários, tanto por seu custo e mobilidade física como quanto a textura em pixels, que está mais próxima do real do que os grãos da película cinematográfica. Está última é intima na elaboração de um espaço sofisticado, fantasioso e irreal, típico da imagem ficcional, o que diminui o potencial verídico da ação. O cineasta austríaco Michael Haneke é mestre no uso da arte digital como símbolo e captação do instante, do real. Em seu filme O Vídeo de Benny, de 1992, somos apresentados a uma primeira e chocante imagem, a de um porco sendo abatido em uma fazenda por uma arma de pressão que é pressionada sob crânio do animal. Essa cena é um longo plano sem cortes, estes que são típicos da farsa narrativa do cinema, filmada com uma câmera caseira de VHS de sua família. Nessa abertura Haneke nos coloca em uma posição de desconforto por parte de imagens que no nosso subconsciente sabemos que podem ser realmente reais, e são. Em uma dada cena, o jovem Benny assassina uma garota com a mesma arma de pressão usada para o grande e roliço porco, mas antes de ativar sua ação de carnificina, Benny liga a sua câmera VHS. Nesse momento vemos todo o assassinato por meio de uma TV que emite a mesma imagem da filmadora (cena comentada do filme: http://www.youtube.com/watch?v=ypsXOm3VbCY). Haneke nos incorpora mais uma vez a sensação de realidade intensificada pela a cena de abertura, nos mostra que este horror é real e que a imagem digital se torna uma prova da concretização da morte, mesmo que caseira, desse emolduramento. Essa cena, que enquadra o digital filmado com película, serve até mesmo como uma metáfora para a relação do vídeo com o cinema, já que muitos o viam como a morte da arte cinematográfica.
Retomo o meu pensamento inicial. O vídeo ainda pode ser visto como um sobrinho de segundo grau do teatro? O que se percebe no momento, é que cinema e vídeo, estão mais interligados do que nunca em relação ao seu passado separatista, é a idéia de convergência dos meios defendida por Arlindo Machado, em seu livro Arte e Mídia, tomando formas. O cinema e sua montagem digital, efeitos especiais, incrustações por chroma key e sensores de movimentos, o torna cada vez mais vídeo. Já o vídeo, com suas novas experiências com foco, sensores sofisticados, captação em full frame, Canon 5d, Red One, se torna cada vez mais cinema.

Referências e fontes:
MACHADO, Arlindo, Arte e Mídia. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008
DUBOIS Philippe, Cinema, Vídeo, Godard. 1 ed. São Paulo: Cosac Naify Ed., 2004
OS FRAGMENTOS DE TRACEY (The Tracey Fragments, 2007, Dir. Bruce McDonald)
HOUSE (House, 1977, Dir. Nobuhiko Ohbayashi)
O VÍDEO DE BENNY (Benny’s Video, 1992, Dir. Michael Haneke)

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