24 de dezembro de 2012

"O Açúcar" de Gullar

Nascido em 1930, ludovicense radicado no Rio, Ferreira Gullar é um dos maiores poetas brasileiro vivos da atualidade, além de notável dramatúrgico, roteirista, pintor e teórico da poesia e arte em geral. Embora ganhador do prêmio Jabuti somente com as recentes obras “Resmungos” e “Em Alguma Parte Alguma” seu popularismo se deu bem antes com suas obras poéticas “Dentro da Noite Veloz” de 1975 e “Poema Sujo”, publicado em 1976, considerado por Vinícius de Moraes como “o mais importante poema escrito em qualquer língua nas ultimas décadas”. 

Dentro da Noite Veloz, publicado em 1975, no auge da ditadura militar, é a obra o que marca o caráter engajador de Ferreira Gullar ao denunciar o cotidiano das classes oprimidas internalizando uma realidade que é de todos. Isso é claramente percebido em “Poema Brasileiro”, um dos poemas mais conhecido que compõe essa obra, trazendo uma linguagem estatística que chama atenção para o problema da mortalidade infantil sem deixar de lado seu acentuado arranjo estilístico.

POEMA BRASILEIRO

No Piauí de cada 100 crianças que nascem 
78 morrem antes de completar 8 anos de idade 

No Piauí 
de cada 100 crianças que nascem 
78 morrem antes de completar 8 anos de idade 

No Piauí 
de cada 100 crianças que nascem 
78 morrem 
antes 
de completar 
8 anos de idade 

antes de completar 8 anos de idade 
antes de completar 8 anos de idade 
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade 
(GULLAR, 2004, p. 159)

Embora "Poema Brasileiro" seja de estrondoso e merecedor sucesso da literatura, o poema que mais me chama atenção é "O Açúcar" onde o eu-lírico, em uma tranquila manhã, divaga sobre a origem do açúcar que adoça seu café. “O Açúcar” ironicamente não tem nada de doce. Talvez até seja aparentemente doce como qualquer produto final ao ser consumido, mas ácido e azedo ao tratar de uma realidade neocolonialista e de desigualdades sociais existentes até hoje. É um poema que vai perfeitamente de encontro com os pensamentos do antropólogo e critico social, Darcy Ribeiro;
Por isso mesmo, o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes. Construímo-nos queimando milhões de índios. Depois, queimamos milhões de negros. Atualmente, estamos queimando, desgastando milhões de mestiços brasileiros, na produção não do que eles consomem, mas do que dá lucro às classes empresariais. (RIBEIRO, 2010)

O AÇÚCAR

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia. este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.


Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos vinte e sete anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.


Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

(GULLAR, 2004, p. 165)

Referências

GULLAR, Ferreira. 2004. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio.
p. 159 e 165.

LUFT, Gabriela. “O poeta, o poema e a militância poética: a produção de Ferreira Gullar em Dentro da noite veloz”, [s.d.].

RIBEIRO, Darcy. 2010. O Brasil como problema. 1o ed. Rio de janeiro: UNB.

7 de outubro de 2012

Curta "Saco Plástico" (2009)

Por: Airton Rener

Responsáveis por uma infinidade de externalidades negativas, as sacolas plásticas, criadas por Alexander Parkes em 62 , mas somente introduzidas em massa nos anos 70, representam um novo padrão de vida que iria se concretizar com a moderna sanha consumista. É nesse contexto que se insere "Plastic Bag", curta dirigido pelo estadunidense Ramin Bahrani, conhecido pelo aclamado e bem premiado filme independente "Man Push Cart"(2005).


Nesse curta Ramim Bahrani põe vida e sentimentalismo na protagonista sacola plástica por meio da figura de estilo denominada de personificação. É com isso e com uma fotografia impecável aliada a planos bem enquadrados que se sustenta um roteiro simples baseado desde o "nascimento" da sacola plástica até o destino final, o"Vórtex", nome dado para a concentração gritante de lixo não biodegradáveis no Oceano Pacífico.

A sensação do curta está associada ao seu valor poético graças a narração do cineasta Wener Herzog,   popularmente conhecido pelo seus documentários "O Homem Urso" (2005) e Encontros no Fim do Mundo (2007). Como também pelo seu caráter filosófico quando este se trata da superficialidade humana em  relação ao seu subproduto de "insignificante importância". Tal insignificância que se multiplica em números exorbitantes os quais refletem para a paradoxal racionalidade do homem e seu sistema falho, desarmônico com a natureza. Segue abaixo o curta de aproximadamente 18min.



Sinopse: Curta que mostra de forma simbólica a longa jornada de um saco plástico (narrado por Werner Herzog) em busca de seu criador perdido até o seu 'término de vida', com o desejo de retorno transmitido pela canção: “I wish you had created me so that I could die” – Eu queria que você tivesse me criado para que eu pudesse morrer. Direção: Ramin Bahrani. Áudio: Inglês Legendas: Português Duração: 18 min.

Direto do "Salamandras Radioativas"

15 de agosto de 2012

Música - Sobre o disco e turnê "Chão" de Lenine


“No início, havia apenas a palavra e meu principal significado para chão: tudo aquilo que me sustenta. Chão, quase uma onomatopeia do andar – que soa nasal e reverbera no corpo todo” Lenine.


“Chão”(2011), é assim que se define o décimo álbum realizado pelo brilhante cantor e compositor pernambucano, Lenine. O novo disco produzido juntamente com Jr Tostoi e seu filho, Bruno Giorgi, embarca para uma temática voltada para a relação da natureza e a paisagem interior do homem. Produzido em sua própria casa, num ambiente mais familiar, seu disco difere do seu ultimo, “Labiata” (2008), marcando um trabalho mais espontâneo, de pai para filho. Como já deixado claramente, “Chão” para Lenine é aquilo que sustenta e que dá força e ao se tratar em alicerces sociais, eis que a família é o chão de tudo e é daí que surge a ideia da capa do CD simplesmente retirado de um álbum de família o qual Lenine está com o neto deitado sobre seu peito. É a partir dessa estética simplista que se reforça a paternidade e a natureza social da família que segundo Rousseau é a mais antiga e mais natural de todas as sociedades.

Com aproximadamente 28 min de duração, o disco é um dos poucos álbuns do atual MPB de caráter cíclico e conceitual, montado para ser apreciado como todo apresentando inicio, meio e fim bem definidos com as musicas “Chão”, “Envergo Mas Não Quebro” e “Isso É Só O Começo” que ao mesmo tempo em que finaliza ela retoma para mais mais uma dose de seu próprio disco. Sem o uso da bateria, o pernambucano se arrisca a um trabalho diferente, portanto, inovador, com composições eletrônicas bem equilibradas entre sons sintéticos e orgânicos que dão uma harmonia perfeita transferindo o ouvinte para um universo bucólico proposto pelo álbum. A participação do guitarrista, Tostoi, para isso, foi essencial tanto para as músicas mais calmas quanto para as mais densas como a “Tudo Que Me Falta, Nada Que Me Sobra”, uma dos destaques do álbum.

O disco é orgânico, intimo e autobiográfico que conta com 10 músicas que se completam.. “Chão”, quase que redundante, é a primeira faixa e o alicerce do álbum que se inicia ao som sutil de serrapilheiras sendo pisadas a passos cada vez mais acelerado. Logo no final dessa musica se percebe batidas de coração do filho Bruno Giorgi que dão sequencia para a próxima "Se Não For Amor, Eu Cegue" caracterizada por um ritmo inicial eletrizante que vai suavizando até chegar num desfecho com um refrão que gruda na cabeça, é uma das mais elaboradas letras do disco, repleto de analogias que conduzem o ouvinte a um ambiente totalmente original e autentico, você mergulha de vez na obra musical. 

A terceira faixa é "Amor É Pra Quem Ama" marca bem o caráter romântico do álbum, quase cai em lugar comum se não fosse uma brilhante ocasião durante a gravação com o canto do canário da sogra de Lenine chamado Fred. É, sem duvida, uma das musicas mais lindas e naturais do "Chão". Logo em seguida há uma mudança de ritmo com a música de passagem obscura, "Seres Estranhos" que combina perfeitamente com o tema da letra, onde se trata da diversidade etno-cultural das cidades que segundo o sociólogo Giddens não é nem artificial e nem menos natural de qualquer outro tipo de comunidade.

Lenine, JR Tostoi e Bruno Giorgi, produtores e músicos do CD
"Uma Canção e Só" é a quinta faixa, lenta, porém bem trabalhada, carregada de um tom bucólico que nos remete a um ambiente interiorano, pastoril, e preenchida pelo som progressivo de uma buleira. Em diante temos a composição mais excitante do disco, "Envergo Mas Não Quebro", que se inicia ao som constante de uma motosserra até se concluir, no final da música, com a queda de uma arvore. A letra faz uma analogia que está associado a resiliência da natureza e resistência emocional do eu-lirico, no entanto, quando vem uma força mecânica, a motosserra, produto do homem, essa capacidade se fragiliza a partir de uma força bruta, endemoniada pelo consumo demasiado.

Há um um certo momento de tensão e revolta, é dai que surge a sétima faixa "Malvadeza" como o próprio nome sugere, é uma retaliação da faixa anterior onde as cigarras cantam deixando a voz de Lenine em segundo plano, a canção é uma verdadeira declamação poética. "Tudo Que Me Falta, Nada Que Me Sobra" é a oitava faixa, e é o destaque do álbum pela sua densidade e harmoniosa composição. Já a próxima música "De Onde Vem A Canção" tem um ritmo descontraído, trabalhando com o fenômeno da metalinguagem. que preenche as entrelinhas do disco. E para finalizar temos uma visão "apocalíptica" de Lenine na última faixa "Isso É Só O Começo", harmonicamente irônico e critico, reunindo artifícios já usados em faixas anteriores. É a música-chave para mais uma dose do seu belíssimo álbum.


A turnê de lançamento de disco leva o telespectador ao mesmo universo proposto pelo álbum de forma sinestésica, é para sentir o Chão! O cenário é simples e aconchegante; chão de serrapilheiras, umas lâmpadas e painéis eletrônicos que lembram o grupo alemão Kraftwerk. Em março, Lenine fez show em Brasília no Teatro Nacional, carismático, pareceu de primeira vista um pouco tímido devido ser um trabalho recente e diferente, mas aos poucos foi se soltando naturalmente até que dançou com todo seu gingado as últimas músicas do show. O set-list não segue a sequencia do álbum, foram misturadas músicas do disco "Chão" com seus sucessos, dentre elas temos o "Rua de Passagem" (Trânsito) o qual caiu bem dentre as outras, foi usados sons urbanos como businas e motores, dando contraste com as músicas de seu novo álbum. Sem dúvidas foi um show inesquecível, singular, além daqueles comuns de um cantor sentado num banquinho!

Direto do "Salamandras Radioativas"

3 de junho de 2012

O Produtor x Criação


O filme para se estabelecer quanto obra física ou virtual, seja em película ou em arquivos no HD, necessita de certas etapas para que todos os elementos estéticos-narrativos do roteiro sejam implementado quanto ficção na tela. Assim, as variadas camadas da equipe de produção de uma obra cinematográfica atuam diretamente para a confecção em termos de promover os caminhos certos para tal arte.  

O que se discute muito no cinema é até que ponto a obra final, já realizada, tem interferências de outros cargos dentro da hierarquia do cinema. Quando se fala de um cinema mais intimista, como é o caso da maior parte da produção nacional, a figura do diretor é soberana nas decisões pontuais, cabendo a ele a escolha de certos aparatos para sua obra, que passa desde a confecção do roteiro até a montagem final, ele está ali, sempre espreitando seu filme para que não se desvirtue de seus ideais. Neste caso, o produtor entra como um aparato para a direção, impondo certos limites máximos sobre a criação dos demais diretores de uma obra, seja o diretor geral ou os diretores de arte. O filme tem um orçamento, logo, a produção se sente no dever de enquadrar o roteiro a realidade de produção e em que mercado está sendo inserido, estas ações de limites “do que pode ou não ser feito” interferem consideravelmente na liberdade criativa, claro, há dinheiro envolvido neste processo de realização. Mas está interferência não parte só do produtor, os demais cargos também são decisivos para este fato, é tolo pensar que um filme é formado por uma soberania criativa, no caso, o diretor. O cinema deve ser pensado como um conglomerado de idéias coletivas de toda uma equipe que trabalha em sintonia em direção a um resultado semelhante.  

O que existe são diretores e produtores mais enraizados na sua visão, que podem ser ou não abertos a mudanças repentinas de produção. Mas no cinema, essas “mudanças repentinas” são sempre os desafios de realização, saber desviá-las é o que se pode esperar de um experiente diretor-produtor. É está instabilidade do momento que provoca certos distúrbios na estética final do produto fílmico, sobretudo quando não se tem um cuidado técnico e especifico no momento de desespero.  

Olhando entrevistas e debates da produtora Sara Silveira, da inventiva empresa Dezenove Filmes (http://www.dezenove.net/), é possível perceber que sua postura no set é rígida e concisa nos seus objetivos, que é dar ao diretor as melhores opções para a quantia de capital que a produção tem para o produto. Um exemplo que pode ser observado nessa afirmação dos filmes em que produziu, é o longa Trabalhar Cansa, de Juliana Roja e Marco Dutra. Antes das filmagens o filme passou por variados testes para a escolha da melhor forma de captação, em película ou em digital. Ao final das analises perceberam que era melhor e mais em conta gravar as cenas em película, usando o Super 16mm, já que acabariam gastando o mesmo com a gravação em digital, pois este necessita de mais equipamento de iluminação.   

O fator da produção neste caso foi sublime, já que o Super 16 mm além de sair o mesmo preço atribuiu à imagem certa textura de grãos que beneficia a estética realística do filme de Rojas e Dutra, característica que no digital não seria presente da mesma forma.