Uma canção, um poema, uma ilustração. Esses são os mais reverentes meios de conexão com o mundo transcendental das artes. Portanto citarei aqui os meios que mais me chamaram atenção nesses últimos dias de maneira desconjunta e às vezes incoerente.Recentemente assisti em um curto espaço de tempo “A árvore da vida” e “Melancolia” dos quais foram filmes que mais instigaram meus pensamentos esses dias. Embora as duas películas sejam de roteiro e direção muito distintas, elas se convergem em um único ponto ao relatar a efemeridade da vida e nossa relação microscópica com o universo. Paro, então, para questionar o tanto em que a linguagem é positiva para a humanidade, pois somos nada mais que animais falantes dos quais no fundo de cada um de nós cabe um instinto selvagem. Somos como animais qualquer cuja evolução nunca chegou ao homem, por mais que a literatura didática nos mostre uma visão antropocêntrica, vivemos apenas ilusões.
(poema dramático para muitas vozes)
I
is aqui o morto
chegado a bom porto
Eis aqui o morto
como um rei deposto
Eis aqui o morto
com seu terno curto
Eis aqui o morto
com seu corpo duro
Eis aqui o morto
enfim no seguro
II
De barba feita, cabelo penteado
jamais esteve tão bem arrumado
De camisa nova, gravata borboleta
parece até que vai para uma festa
No rosto calmo, um leve sorriso
nem parece aquele mais-morto-que-vivo
Imóvel e rijo assim como o vês
parece que nunca esteve tão feliz
III
Morava no Méier desde menino
Seu grande sonho era tocar violino
Fez o curso primário numa escola pública
quanto ao secundário resta muita dúvida
Aos treze anos já estava empregado
num escritório da rua do Senado
Quando o pai morreu criou os irmãos
Sempre foi um homem de bom coração
Começou contínuo e acabou funcionário
Sempre eficiente e cumpridor do horário
Gostou de Nezinha, de cabelos longos,
que um dia sumiu com um tal de Raimundo
Gostou de Esmeralda uma de olhos pretos
Ela nunca soube desse amor secreto
Endoidou de fato por Laura Marlene
que dormiu com todos menos com ele
Casou com Luísa, que morava longe,
não tinha olhos pretos nem cabelos longos
Apesar de tudo, foi bom pai de família
sua casa tinha uma boa mobília
Conversava pouco mas foi bom marido
Comprou televisão e um rádio transístor
Não foi carinhoso com a mulher e a filha
mas deixou para elas um seguro de vida
Morreu de repente ao chegar em casa
ainda com o terno puído que usava
Não saiu notícia em jornal algum
Foi apenas a morte de um homem comum
E porque ninguém noticiou o fato
Fazemos aqui este breve relato
IV
Não foi nada de mais, claro, o que aconteceu:
apenas um homem, igual aos outros, que morreu
Que nos importa agora se quando menino
O seu grande sonho foi tocar violino?
Que nos importa agora quando o vamos enterrar
se ele não teve sequer tempo de namorar?
Que nos importa agora quando tudo está findo
se um dia ele achou que o mar estava lindo?
Que nos importa agora se algum dia ele quis
Conhecer Nova York, Londres ou Paris?
Que nos importa agora se na mente confusa
ele às vezes pensava que a vida era injusta?
Agora está completo, já nada lhe falta:
nem Paris nem Londres nem os olhos de Esmeralda
V
Mas é preciso dizer que ele foi como um fio
d’água que não chegou a ser rio
Refletiu no seu curso o laranjal dourado
sem que nada desse ouro lhe fosse dado
Refletiu na sua pele o céu azul de outubro
e as esplendentes ruínas do crepúsculo
E agora, quando se vai perder no mar imenso,
tudo isso, nele, virou rigidez e silêncio:
toda palavra dita, toda palavra ouvida
todo riso adiado ou esperança escondida
toda fúria guardada, todo gesto detido
o orgulho humilhado, o carinho contido
o violino sonhado, as nuvens, a espuma
das nebulosas, a bomba nuclear
agora nele são coisa alguma
VI
Mas no fim do relato é preciso dizer
que esse morto não teve tempo de viver
Na verdade vendeu-se, não como Fausto, ao Cão:
vendeu sua vida aos seus irmãos
Na verdade vendeu-a, não como Fausto, a prazo:
vendeu-a à vista, ou melhor, deu-a adiantado
Na verdade vendeu-a, não como Fausto, caro:
vendeu-a barato e, mais, não lhe pagaram
VII
Enfim este é o morto
agora homem completo:
só carne e esqueleto
Enfim este é o morto
totalmente presente:
unha, cabelo, dente
Enfim este é o morto:
um anônimo brasileiro
do Rio de Janeiro
de quem nesta oportunidade
damos notícia à cidade
Ferreira Gullar, grande conterrâneo meu e notório personagem da literatura brasileira, expressa bem as desilusões de um homem que acaba por cair em anonimato com no poema acima; “Noticia da Morte de Alberto da Silva (poema dramático para muitas vozes)”. Percebe-se em suas obras uma forte influência de Machado principalmente do clássico romance “Memorias Póstumas de Brás Cubas” do qual, segundo a crítica, introduziu o realismo no Brasil no século XIX. O Realismo na minha concepção é um dos momentos mais cruciais da história literária brasileira, pois sua radicalização com o romantismo rumo à objetividade acaba ascendendo para o naturalismo, onde a ciência, o natural, “o selvagem” são valorizados com uma forte influência das teorias evolucionárias de Charles Darwin, a ciência e a literatura nunca estiveram tão próximas. No naturalismo a morte que para muitos é trágico e deprimente, para a natureza ela é necessária, é um simples processo biológico.
UMA IMAGEM
DESMATERIALIZANDO A MATÉRIA
(...) desmaterializando a obra de arte no fim do milênio/ faço um quadro com
(...) desmaterializando a obra de arte no fim do milênio/ faço um quadro com
moléculas de hidrogênio /fios de pentelho de um velho armênio / cuspe de mosca
pão dormido asa de barata torta /meu conceito parece à primeira vista /um
barrococó figurativo neo-expressionista /com pitadas de art-nouveau póssurrealista
/calcado na revalorização da natureza morta (...)
Um dos grandes cantores do atual movimento MPB, Zeca Baleiro, vem com uma bagagem mais do que "desmaterialista" em sua canção "Bienal" do qual talvez não seja tão popularmente conhecida como as badaladas "Telegrama" e "Flor da Pele", entretanto considero umas de suas melhores musicas composta por ele e interpretada por Zeca e Zé Ramalho. Com sua modéstia e inteligência, Zeca Baleiro critica o pós moderno nessa canção ao som de violão desprovido qualquer outro instrumento oq ue deixa a música com um tom mais poético. Baleiro fez essa canção inspirado Bienal Internacional de São Paulo de 1996, cujo tema era “A Desmaterialização da Obra de Arte no Fim do Milênio”. Em sua letra Zeca deixa sua percepção de arte contemporânea ao comparar "cuspe de mosca, pão dormido e asa de barata torta" se a qualquer coisa que pode virar arte que chegue apenas a um "resultado estético bacana". Zeca, ao contrário de muitos cantores da MPB, aborda uma temática diferente deixando seu ponto de vista em relação a arte pós moderna, ao mesmo tempo em que se mantém conservador. Falando em Zeca Baleiro e Bienal, Baleiro estará fazendo show em Brasília no dia 12 de dezembro nesse ano na abertura da 1º Bienal do Livro e da Leitura às 21h em frente ao Museu Nacional. (http://www2.uol.com.br/zecabaleiro/)
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