29 de abril de 2011

Cinema: A FONTE DA DONZELA - A Vingança dos Puros

Por: Lucas Sá

Bergman, sublime diretor sueco, em A Fonte da Donzela, aproxima o homem mais uma vez de seus devaneios religiosos, tendo este filme uma forte ligação ideológica com outra de suas produções, o famoso, O Sétimo Selo. Em a Fonte da Donzela, o diretor nos revela as raízes dos pecados nas mãos de quem tentou negá-lo, no caso uma família cristã do século XIV.

Em todo instante o longa intercala o cristianismo com outras religiões pagãs. Logo na primeira cena, a personagem Ingeri (Gunnel Lindblom), uma serva da família que é tratada como filha de criação, mesmo tendo tendências a sentimentos de revolta, acende a fogueira e segurando um longo tronco de madeira para abrir a janela no teto com o intuito de que a "fumaça" vá embora do ambiente, ela diz: "Venha, deus Odin! Venha, deus Odin! Venha, deus Odin! Eu busco seus serviços!". Então de princípio, quem reina de forma discreta (por baixo dos panos) nesse ambiente dominado pelo cristianismo fervoroso é a religião pagã. Intensificando essa análise, na cena seguinte, aparecem os "senhores" da casa, a figura do pai e da mãe, que sendo o dia da paixão de cristo, ela se martiriza, queimando sua própria mão com a cera de uma vela quente enquanto reza para Deus. Sendo essa vela uma metáfora visual ao que irá acontecer em alguns instantes, ou seja, a dor sofrida por essa queimadura é ligada por meio do objeto, a vela, ao qual a sua filha virgem, Frida, levará para a igreja em uma espécie de oferenda para a virgem Maria, ao qual este trajeto terminará de forma trágica, com seu estupro e morte por dois pastores bastardos. "Apenas a velha história: bastardos geram bastardos!".

Toda a motivação que serve para que sua filha Frida vá para a igreja levar essas velas são "empurradas" por meio de sentimentos obscuros, que não fazem parte daquela família, pelo ou menos superficialmente. E nesse contexto que Bergman insere a cada personagem seus pecados. A filha cansada da noite anterior, onde dançou com vários homens de forma pudica, não deseja ir levar os presentes ao Senhor, pois está cansada, logo se revela o pecado da preguiça. A criada Ingeri, que cultua o Deus Odin, tem ciúmes e raiva de Frida, a virgem intocável, por ter dançado com o homem que forçadamente a engravidou, o que revela o pecado da inveja. O pai e a mãe, que ao descobrirem a morte da filha, são tomados por um sentimento que recobre o cristianismo e revela seu lado demoníaco e sem perdão, o que revela o pecado da ira. Em outro dado momento a filha ao longo da viagem, quando encontra os seus estupradores pelo caminho, oferece pão a eles, enquanto comem ela engrandece seus status econômicos e sociais, dizendo: " A casa é grande. Temos que levantar a cabeça para vê-la. Talvez seja a filha de um rei. Papai usa uma capa de prata e um capacete dourado... Minha mãe tem tantas chaves que não pode usá-las no cinto... então uma criada as carrega em uma almofada. E talvez vocês sejam príncipes enfeitiçados por uma bruxa..." O que revela o pecado do orgulho. Logo, subjetivamente, Bergman coloca em níveis os pecados que rodeiam essa família, mesmo que eles não sejam tão escrachados. Assim, são esses pecados que levam a filha pura a esse destino do acaso, seu corrompimento - vaginal.

Ingeri, a serva/filha, tem ligações com a religião pagã, lavando-nos a acreditar que ela foi a responsável por toda a ação trágica. Quando diz: "Venha, deus Odin! Eu busco seus serviços!". Ela se refere à Frida (a virgem), algo como se esses serviços fossem o provocador do ponto de virada. Em uma seguinte cena, Ingeri, desenvolvendo seu ritual, coloca dentro do pão que Frida levará para a viagem de sua casa a igreja, um sapo vivo. O que pode ser uma relação da carne de cristo (o pão), sendo preenchida por esse elemento de uma religião pagã, que no momento sempre esteve abaixo do cristianismo (o sapo). Duas bandas de um pão espremendo e apertando o sapo em seu interior. A religião pagã em questão se refere aos Deuses da mitologia nórdica. Sendo essa cultura o grande rato que rasteja por meio desses cristãos, ela está presente em cada membro, como no nome do pai, interpretado por Max von Sydow, que é parceiro de Bergman em vários de seus filmes, como A Hora do Lobo, O Sétimo Selo e Morangos Silvestres. O nome de seu personagem é Töre (Thor), representando a força da natureza (trovão) no paganismo germânico, sendo que este até mesmo aparece em uma cena batendo um martelo. Odin, Deus que a criada invejosa clama, é o soberano da sabedoria, da guerra e da morte. Frida, a virgem, representa a Deusa Frigga, precursora da fertilidade, do amor e da união. E um senhor que Frida encontra durante sua trajetória em um barco sob um pequeno lago, representa a figura de Hel (que deu origem a palavra Hell, inferno), que é o recolhedor das almas mortas, ele prever a morte da donzela e dos três irmãos. Logo, a ligação de seus nomes com os Deuses da mitologia nórdica, nos revela o seu caráter de construção pessoal, o que fixa a idéia de um cristianismo permeado por pontos negro de uma religião pagã.
O roteiro de A Fonte da Donzela é escrito como uma fábula quadrada. Onde se apresenta todos seus elementos narrativos, com uma moral no final da história. O que se assemelha a famosa história "infantil" de A Chapeuzinho Vermelho. As ações que determinam a trajetória da protagonista são os mesmo tomados por Chapeuzinho Vermelho, claro, com algumas alterações gráficas. A cesta de doces que Chapeuzinho leva para a vovó no roteiro são convertidos em velas que irão ser levadas para uma igreja em uma espécie de oferenda a Deus e a Maria. A floresta que Frida teme de início, por sua escuridão é a representação da floresta da história. Em dado momento, ocorre até mesmo falas semelhantes ao da fábula, como quando Frida é provocada por seus estupradores. Eles falam:

- Meu irmão diz que minha dama tem mãos tão brancas.
- Princesas não lavam roupa nem acendem fogo.
- Meu irmão diz que minha dama tem um pescoço tão branco.
- Para que o colar de ouro brilhe mais.
- Meu irmão diz que minha dama tem uma cintura tão fina.
(...)
- Estou indo para a igreja com as velas da Virgem.


Assim, os pastores estupradores se transformam na figura do lobo, pronto para comer aquela deliciosa carne, no sentido sexual. Há em outro momento esse paralelo de pastores = lobos, quando ela diz, "E talvez vocês sejam príncipes enfeitiçados por uma bruxa...e as cabras sejam ursos e lobos que ela também encantou". Não Frida, não são as cabras, são os pastores! E no final, como já citei, tem a moral. Nesse quesito o filme se torna um mistério. Na cena final a família encontra o corpo da filha, guiados por Ingeri, ao chegarem ao local o seu pai se ajoelha ao lado da filha morta e coberta de sangue, apoia seus braços em seus ombros e a ergue... Nesse momento começa jorrar uma fonte de água transparente. Os membros da família, todos pecadores, começam a se lavar com essa água, como uma forma de limpar seus pecados, purificando suas almas do horror que fizeram pelo o ato de vingança. É nesse momento que Töre, o pai, levanta e afirma que naquele local, com suas mãos pecadoras, ele irá erguer uma igreja em seu nome. É o perdão tomando formas, onde Töre não perdoa os estupradores, mas Deus tem que aceitar o seu perdão. Agora fica a dúvida, e se a fonte que jorra não for um milagre propriamente dito, mas sim um fenômeno natural, já que momento antes de os estupradores irem embora começa a nevar, sendo que essa neve pode ter se convertido em água em seguida? Seria por parte da família, uma forma de ver o perdão de Deus ou um devaneio religioso?

"Eu prometo, Senhor... Aqui, perante ao corpo de minha filha... Eu lhe prometo...
Que construirei uma igreja, como penitência pelo meu pecado. Ela será
construída aqui. De pedra firme... E com minhas mãos!"
Um dos elementos técnicos que Bergman utiliza a favor da narrativa em A Fonte da Donzela é a amenização dos sons naturais e de ambientes. Toda a trama é composta por sons externos, que muitas das vezes são anulados na edição, prevalecendo um silêncio que chega a assustar o espectador. A cena de abertura, onde se encontra Ingeri e a fogueira, podemos escutar com maior precisão apenas o som de uma galinha cacarejando ao longe, o que nos coloca em um ambiente rural e isolado. A anulação em partes do áudio fixa um sentimento de opressão, ao qual gera sob este sentimento um terror psicológico que vai tomando formas de suspense. Isso ocorre, sobretudo, nas cenas em que os irmãos adentram e invadem a casa desta família sem saberem que estes são os pais da garota que mataram e violentaram, são nessas cenas em que o silêncio reina! O irmão mais novo percebe esse fato desde quando todos sentam-se à mesa para jantar, cena que faz clara citação ao quadro A Santa Ceia, de Leonardo da Vinci, o jovem percebe que é ali a casa da donzela, e fica em silêncio... Sufocando a descoberta, sufocando sua morte. Assim, além de A Fonte da Donzela ser um ótimo drama, ele se revela também como um incrível filme de suspense e terror psicológico, sempre buscando se fortalecer no silêncio, na ausência.

Levando o texto em relação as suas influências futuras, pode se perceber que a forma como o roteiro de A Fonte da Donzela foi tratado nos remete de imediato aos chamados: Revenge Movies. Famosos filmes dos anos 70/80 que buscam o horror gráfico e por vezes trash para exprimir sua violência mental e sexual, se assemelhando aos Sexploitation da época. Filmes como, Eu Cuspirei na Sua Cova (I Spit on Your Grave - 1978), Aniversário Macabro (The Last House on the Left - 1972) e o recente Run! Bitch Run! (2009), são alguns dos clássicos deste gênero, que se baseia em um roteiro concreto, no esquema: Apresentação da personagem, violentação sexual (estupro), volta por cima e a vingança final. Sem dúvidas, A Fonte da Donzela serviu de inspiração para esses roteiristas/diretores começarem a desenvolver suas idéias. Mas claro, de forma menos conceitual e intimista.

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