30 de abril de 2011

Cinema: A Narrativa do Invisível

Por: Lucas Sá

A linguagem do cinema nem sempre foi concisa em sua forma. O espectador, que de início era apenas um objeto a frente de uma tela, não tinha aparatos ou bengalas para se segurar na tentativa de compreender tais imagens em movimento. Logo, surge por meio de colaboradores cinematográficos, uma revisão de sua linguagem, que ainda era prematura, como nos chamados “filmes de mostragem”, dos irmãos Lumière, onde estes, apenas "mostravam" ou apontavam a objetiva à ação natural, sem um sentido narrativo implantado. É nesse contexto que surge o desejo de se ter um cinema como arte, sendo Meliés o primeiro a perceber as vantagens alegóricas que a parafernália filmadora era capaz, incorporando suas técnicas de ilusão, que são fundamentais para a imersão do olho, nas filmagens de seus curtas ilusionistas, que nos enganam visualmente a todo o momento.

Assim, o chamado primeiro cinema (1985 - 1915) é rompido por técnicas que elavam o cinema ao seu status de arte, que tanto os burgueses e a escola impressionista desejavam, se distanciando assim, do conceito de que o cinema era um teatro filmado, ao qual muitos o julgavam. Os espectadores do período viam a cena apenas como um ator que ao se deslocar para fora do quadro (tela) estava nos bastidores do teatro, ou seja, o espaço atrás da câmera é uma desconstrução da imagem que se via, além disso, o cinema não tinha cor e nem som, o que fixa essa idéia de desdém por parte dos artistas e público da época deste primeiro cinema. É com Griffith que o cinema toma ares de arte, mesmo tendo realizadores que anterior a ele obtiveram sucesso na experimentação da narrativa, influenciando este desejo, como Edwin Poter, no considerado o primeiro faroeste e filme de perseguição, The Great Train Robbery (1903), e o já citado George Mélies, com o também considera primeiro filme de fantasia, Viagem a Lua (1902). É curioso falar que em ambos já se tem um forte apego a criação de uma linguagem narrativa para o cinema, como em O Grande Roubo do Trem, onde os planos sofrem variações de dentro e fora do trem, ocorrendo uma linearidade do tempo da ação. Sendo um filme de perseguição, estilo que contribuiu preciosamente para o nascimento da linguagem, O Grande Roubo do Trem se apega a um roteiro, como já disse, linear, onde se tem a apresentação dos bandidos, a perseguição do mocinho ou da polícia atrás dele, e por fim seu aprisionamento. É no memento da perseguição em si, que o filme se torna mais ativo em relação a montagem, dando a entender, a partir da sequência de diferentes planos a passagem do tempo e de espaço entre bandido e policial. Foi percebendo esses detalhes que Griffith cria a linguagem do cinema, ou como dizem: a gramática do cinema. Em 1915, Griffith lança seu filme, O Nascimento de uma Nação (1915), que é o precursor dessa "nova" forma de ver o filme, criando a montagem paralela (ou alternada), analítica e de contiguidade. Isso foi capaz de controlar e reeducar a lógica fílmica do espectador, principalmente a partir dos anos 20, que mesmo ainda com os chamados "Explicadores" ou Benjis (no Japão) já conseguiam compreender os sentidos que a câmera proporcionava através da técnica da montagem.
Depois de Griffith o cinema passou a se locomover aceleradamente, se aproximando do seu nascimento maquinal, que trabalha em séries constantes. Em relação às outras artes, o cinema é fruto de um período que cada vez mais requer agilidade, isso foi sendo transportado para suas técnicas de linguagem, onde tudo se desenvolve como uma bala atravessando um trem. A pintura e o teatro, para evoluírem, caminharam vários séculos, dando um passo de cada vez, escola por escola, tinta por tinta. Já no cinema isso é quase que anulando, tanto que em menos de meio século a sua linguagem já tinha avançado em grandes escalas, fixando elementos extras e implementando a sua "impressão de realidade", como a cor e o som. Portanto, através desse turbilhão de inovações, o cinema se torna cada vez mais sua gramática invisível, numa forma de transpor a "ilusão do real" ao espectador sem que ele se dê conta de que está sendo enganado ou traído. Um realizador descobre uma nova forma de transpor um sentimento, como a transposição do olhar do personagem para um sonho, ele dissolve em névoa a tela, dando um ar de desligamento, de sono. É assim que o espectador "ler" essa imagem, logo essa técnica que de início foi inovadora, será copiada por outro, e por outro... O que torna esse efeito banal, ou seja, invisível. Esses elementos da narrativa fílmica acabam sendo implementados no subconsciente do público, que permeia nos futuros filmes a partir da memória, é esse motor ligado no automático, o cérebro, que permite que o filme não seja aprendido, mas sim sentindo, se diferenciando assim da leitura, onde o indivíduo é forçado (sendo mais rígido no termo) a aprender a ler e a escrever para poder em seguida dominar a leitura. Logo, o cinema adquiri uma linguagem sua, que é facilitada por meio das outras formas de arte, que já haviam treinando o olhar individual para com as imagens em movimento, o que conclui-se que o cinema não é uma arte autônoma, ela necessita de outras vertentes para que seja compreendida em sua plenitude. Uma frase que Jean-Claude Carrière seleciona em seu livro A Linguagem Secreta do Cinema, de Jean Epstein, famoso teórico do cinema, resume bem essa conclusão: "A linguagem cinematográfica é específica do cinema". Mas eu incluiria ao fim: "Que depende de outras".

Mas e se essa capa invisível que o cinema persiste em vestir se tornar obrigatória ou enfadonha? Bom, é isso que ocorreu durante os anos 1950, e até hoje, como em Hollywood Land. A linguagem se desenvolveu de forma tão surpreendente que tudo o que era novidade se tornou banal e clichê, proporcionando uma melhor apreensão do espectador que começa a se sentir acomodado ao filme, com um pensamento de estar vendo mais um filme, um igual, um idêntico, um mesmo filme. Tendo apenas algumas alterações, como elenco, cenário ou diretor, mas é o mesmo filme. Logo, a linguagem que antes era inovadora, é apenas mais um detalhe, o que nos faz descartar os grandes clássicos e até mesmo os precursores desta narrativa, já que estes já se tornaram "comuns". Jean-Claude Carrière chega a citar que as primeiras faculdades de cinema ensinavam os alunos uma fórmula ditatorial para se fazer um filme perfeito, como: "Um filme não deve passar de 90 minutos", "o ator nunca deve olhar para a câmera", "um rosto sem expressão ou falas só deve durar apenas 48 quadros de fotogramas" e "nunca se deve colocar a palavra morte no título". Mas claro que isso não durou muito tempo, pois "uma linguagem perfeita é uma linguagem morta". É essa acomodação que gera certo incomodo aos mais experimentais do meio, como os inovadores da escola francesa Nouvelle Vague, que buscavam um desapego a está forma dogmática de se fazer cinema, sendo este classicismo um fator que privilegia a consciência rasa do espectador. Algo que ocorre com frequência na TV.
Não se pode mais apreciar uma bela imagem ou ter uma cena com um ritmo mais lento em um filme ou telenovela nos canais de TV, pois o espectador está sempre buscando um entretenimento superficial e rítmico, que não provoque uma nostalgia visual, pois apenas com um clique no controle remoto ele pode resolver facilmente o "problema", e a emissora perde mais um cliente. Sendo assim, como afirma Carrière em um de seus pensamentos, o telespectador se torna o próprio cinema, podendo editar/montar apenas com seu controle o que ele deseja ver naquele momento e naquela ocasião, escolhendo sua própria programação, o que para Federico Fellini, "é a criação de um ser arrogante, autoritário e neuroticamente impaciente". Mas o cinema se supera da máquina televisiva, pois a experiência fílmica (dentro da sala de cinema) é intocável. A exibição, sempre segue plena, sem interrupções, tendo toda a atenção do olho humano, que tanto Munsterberg idolatra em suas teorias, voltada para uma tela central. Assim, não se pode avançar ou recuar o filme, caso contrário ocorrerá uma quebra da experiência no espectador, fato que ocorre com frequência com o vídeo, que se alia da TV por seu desrespeito midiático.

O aperfeiçoamento da linguagem cinematográfica, além de proporcionar um estado de transgressão ao seu público, fez com que os realizadores se tornassem cada vez mais espalhafatoso, no sentido visual. Todo o elemento que foi sendo criando foi implementado na narrativa, mas o montante ou as acumulações dessas técnicas podem gerar, dependendo de suas dosagens, certo esquizofrenismo da imagem, que busca apenas o "enfeitar", e que se esquece de suas razões. Esse conjunto de técnicas, como a câmera lenta, efeitos digitais e filtros, se utilizados com intenções apenas de embelezamento, faz com que provavelmente a ação se torne esteticamente frágil e descartável, pois isso provoca o aparecimento do "visível" que foi conquistado anteriormente pelo "invisível", sendo assim, as entrelinhas são descartadas e arremessadas na tela como uma bola. O certo é ter uma dosagem entre o visível e o invisível, para se ter um equilíbrio estético desejável, mas claro que isso vai das questões formais de cada realizador. Tendo como exemplo, podemos citar alguns diretores contemporâneos, entre eles, Michael Heneke, que busca uma simplificação tanto da imagem quanto da montagem, em filmes como A Fita Branca e Violência Gratuita. Neste último, Heneke chega inclusive a flertar com essa questão do vídeo e do controle remoto, ou seja, até onde isso pode interferir na narrativa, tendo cenas em que até mesmo um dos personagens pega um controle remoto e volta a uma dada cena do filme. Outros diretores que souberam utilizar esse "meio termo" sem agredir a experiência fílmica foi Darren Aronofsky, com Cisne Negro e Réquiem Para um Sonho, e Lars Von Trier com Anticristo. Sendo Trier um caso á parte, pois sua filmografia é permeada por momentos de extremo realismo da imagem, que tentam anular qualquer "trucagem" visual, como em Os Idiotas e Dançando no Escuro, e em outros momentos, onde existe certa tendência ao apelo visual e digital, sendo que está pode ser considerado sua fase atual, com no já citado Anticristo, e no seu novo filme, que ainda não tem data de estréia, Melancolia.

''Há dois níveis de leitura em um filme: o visível e o invisível. O que você põe diante da câmera é o
visível. E se só houver isso, o que você faz é um telefilme. Os verdadeiros filmes, para mim,
são aqueles nos quais há uma espécie de invisível que só pode ser visto através daquele
visível (...)'' - Jean-Luc Godard, em entrevista para o livro Grandes Diretores de Cinema.

29 de abril de 2011

Cinema: A FONTE DA DONZELA - A Vingança dos Puros

Por: Lucas Sá

Bergman, sublime diretor sueco, em A Fonte da Donzela, aproxima o homem mais uma vez de seus devaneios religiosos, tendo este filme uma forte ligação ideológica com outra de suas produções, o famoso, O Sétimo Selo. Em a Fonte da Donzela, o diretor nos revela as raízes dos pecados nas mãos de quem tentou negá-lo, no caso uma família cristã do século XIV.

Em todo instante o longa intercala o cristianismo com outras religiões pagãs. Logo na primeira cena, a personagem Ingeri (Gunnel Lindblom), uma serva da família que é tratada como filha de criação, mesmo tendo tendências a sentimentos de revolta, acende a fogueira e segurando um longo tronco de madeira para abrir a janela no teto com o intuito de que a "fumaça" vá embora do ambiente, ela diz: "Venha, deus Odin! Venha, deus Odin! Venha, deus Odin! Eu busco seus serviços!". Então de princípio, quem reina de forma discreta (por baixo dos panos) nesse ambiente dominado pelo cristianismo fervoroso é a religião pagã. Intensificando essa análise, na cena seguinte, aparecem os "senhores" da casa, a figura do pai e da mãe, que sendo o dia da paixão de cristo, ela se martiriza, queimando sua própria mão com a cera de uma vela quente enquanto reza para Deus. Sendo essa vela uma metáfora visual ao que irá acontecer em alguns instantes, ou seja, a dor sofrida por essa queimadura é ligada por meio do objeto, a vela, ao qual a sua filha virgem, Frida, levará para a igreja em uma espécie de oferenda para a virgem Maria, ao qual este trajeto terminará de forma trágica, com seu estupro e morte por dois pastores bastardos. "Apenas a velha história: bastardos geram bastardos!".

Toda a motivação que serve para que sua filha Frida vá para a igreja levar essas velas são "empurradas" por meio de sentimentos obscuros, que não fazem parte daquela família, pelo ou menos superficialmente. E nesse contexto que Bergman insere a cada personagem seus pecados. A filha cansada da noite anterior, onde dançou com vários homens de forma pudica, não deseja ir levar os presentes ao Senhor, pois está cansada, logo se revela o pecado da preguiça. A criada Ingeri, que cultua o Deus Odin, tem ciúmes e raiva de Frida, a virgem intocável, por ter dançado com o homem que forçadamente a engravidou, o que revela o pecado da inveja. O pai e a mãe, que ao descobrirem a morte da filha, são tomados por um sentimento que recobre o cristianismo e revela seu lado demoníaco e sem perdão, o que revela o pecado da ira. Em outro dado momento a filha ao longo da viagem, quando encontra os seus estupradores pelo caminho, oferece pão a eles, enquanto comem ela engrandece seus status econômicos e sociais, dizendo: " A casa é grande. Temos que levantar a cabeça para vê-la. Talvez seja a filha de um rei. Papai usa uma capa de prata e um capacete dourado... Minha mãe tem tantas chaves que não pode usá-las no cinto... então uma criada as carrega em uma almofada. E talvez vocês sejam príncipes enfeitiçados por uma bruxa..." O que revela o pecado do orgulho. Logo, subjetivamente, Bergman coloca em níveis os pecados que rodeiam essa família, mesmo que eles não sejam tão escrachados. Assim, são esses pecados que levam a filha pura a esse destino do acaso, seu corrompimento - vaginal.

Ingeri, a serva/filha, tem ligações com a religião pagã, lavando-nos a acreditar que ela foi a responsável por toda a ação trágica. Quando diz: "Venha, deus Odin! Eu busco seus serviços!". Ela se refere à Frida (a virgem), algo como se esses serviços fossem o provocador do ponto de virada. Em uma seguinte cena, Ingeri, desenvolvendo seu ritual, coloca dentro do pão que Frida levará para a viagem de sua casa a igreja, um sapo vivo. O que pode ser uma relação da carne de cristo (o pão), sendo preenchida por esse elemento de uma religião pagã, que no momento sempre esteve abaixo do cristianismo (o sapo). Duas bandas de um pão espremendo e apertando o sapo em seu interior. A religião pagã em questão se refere aos Deuses da mitologia nórdica. Sendo essa cultura o grande rato que rasteja por meio desses cristãos, ela está presente em cada membro, como no nome do pai, interpretado por Max von Sydow, que é parceiro de Bergman em vários de seus filmes, como A Hora do Lobo, O Sétimo Selo e Morangos Silvestres. O nome de seu personagem é Töre (Thor), representando a força da natureza (trovão) no paganismo germânico, sendo que este até mesmo aparece em uma cena batendo um martelo. Odin, Deus que a criada invejosa clama, é o soberano da sabedoria, da guerra e da morte. Frida, a virgem, representa a Deusa Frigga, precursora da fertilidade, do amor e da união. E um senhor que Frida encontra durante sua trajetória em um barco sob um pequeno lago, representa a figura de Hel (que deu origem a palavra Hell, inferno), que é o recolhedor das almas mortas, ele prever a morte da donzela e dos três irmãos. Logo, a ligação de seus nomes com os Deuses da mitologia nórdica, nos revela o seu caráter de construção pessoal, o que fixa a idéia de um cristianismo permeado por pontos negro de uma religião pagã.
O roteiro de A Fonte da Donzela é escrito como uma fábula quadrada. Onde se apresenta todos seus elementos narrativos, com uma moral no final da história. O que se assemelha a famosa história "infantil" de A Chapeuzinho Vermelho. As ações que determinam a trajetória da protagonista são os mesmo tomados por Chapeuzinho Vermelho, claro, com algumas alterações gráficas. A cesta de doces que Chapeuzinho leva para a vovó no roteiro são convertidos em velas que irão ser levadas para uma igreja em uma espécie de oferenda a Deus e a Maria. A floresta que Frida teme de início, por sua escuridão é a representação da floresta da história. Em dado momento, ocorre até mesmo falas semelhantes ao da fábula, como quando Frida é provocada por seus estupradores. Eles falam:

- Meu irmão diz que minha dama tem mãos tão brancas.
- Princesas não lavam roupa nem acendem fogo.
- Meu irmão diz que minha dama tem um pescoço tão branco.
- Para que o colar de ouro brilhe mais.
- Meu irmão diz que minha dama tem uma cintura tão fina.
(...)
- Estou indo para a igreja com as velas da Virgem.


Assim, os pastores estupradores se transformam na figura do lobo, pronto para comer aquela deliciosa carne, no sentido sexual. Há em outro momento esse paralelo de pastores = lobos, quando ela diz, "E talvez vocês sejam príncipes enfeitiçados por uma bruxa...e as cabras sejam ursos e lobos que ela também encantou". Não Frida, não são as cabras, são os pastores! E no final, como já citei, tem a moral. Nesse quesito o filme se torna um mistério. Na cena final a família encontra o corpo da filha, guiados por Ingeri, ao chegarem ao local o seu pai se ajoelha ao lado da filha morta e coberta de sangue, apoia seus braços em seus ombros e a ergue... Nesse momento começa jorrar uma fonte de água transparente. Os membros da família, todos pecadores, começam a se lavar com essa água, como uma forma de limpar seus pecados, purificando suas almas do horror que fizeram pelo o ato de vingança. É nesse momento que Töre, o pai, levanta e afirma que naquele local, com suas mãos pecadoras, ele irá erguer uma igreja em seu nome. É o perdão tomando formas, onde Töre não perdoa os estupradores, mas Deus tem que aceitar o seu perdão. Agora fica a dúvida, e se a fonte que jorra não for um milagre propriamente dito, mas sim um fenômeno natural, já que momento antes de os estupradores irem embora começa a nevar, sendo que essa neve pode ter se convertido em água em seguida? Seria por parte da família, uma forma de ver o perdão de Deus ou um devaneio religioso?

"Eu prometo, Senhor... Aqui, perante ao corpo de minha filha... Eu lhe prometo...
Que construirei uma igreja, como penitência pelo meu pecado. Ela será
construída aqui. De pedra firme... E com minhas mãos!"
Um dos elementos técnicos que Bergman utiliza a favor da narrativa em A Fonte da Donzela é a amenização dos sons naturais e de ambientes. Toda a trama é composta por sons externos, que muitas das vezes são anulados na edição, prevalecendo um silêncio que chega a assustar o espectador. A cena de abertura, onde se encontra Ingeri e a fogueira, podemos escutar com maior precisão apenas o som de uma galinha cacarejando ao longe, o que nos coloca em um ambiente rural e isolado. A anulação em partes do áudio fixa um sentimento de opressão, ao qual gera sob este sentimento um terror psicológico que vai tomando formas de suspense. Isso ocorre, sobretudo, nas cenas em que os irmãos adentram e invadem a casa desta família sem saberem que estes são os pais da garota que mataram e violentaram, são nessas cenas em que o silêncio reina! O irmão mais novo percebe esse fato desde quando todos sentam-se à mesa para jantar, cena que faz clara citação ao quadro A Santa Ceia, de Leonardo da Vinci, o jovem percebe que é ali a casa da donzela, e fica em silêncio... Sufocando a descoberta, sufocando sua morte. Assim, além de A Fonte da Donzela ser um ótimo drama, ele se revela também como um incrível filme de suspense e terror psicológico, sempre buscando se fortalecer no silêncio, na ausência.

Levando o texto em relação as suas influências futuras, pode se perceber que a forma como o roteiro de A Fonte da Donzela foi tratado nos remete de imediato aos chamados: Revenge Movies. Famosos filmes dos anos 70/80 que buscam o horror gráfico e por vezes trash para exprimir sua violência mental e sexual, se assemelhando aos Sexploitation da época. Filmes como, Eu Cuspirei na Sua Cova (I Spit on Your Grave - 1978), Aniversário Macabro (The Last House on the Left - 1972) e o recente Run! Bitch Run! (2009), são alguns dos clássicos deste gênero, que se baseia em um roteiro concreto, no esquema: Apresentação da personagem, violentação sexual (estupro), volta por cima e a vingança final. Sem dúvidas, A Fonte da Donzela serviu de inspiração para esses roteiristas/diretores começarem a desenvolver suas idéias. Mas claro, de forma menos conceitual e intimista.

28 de abril de 2011

The Rocky Horror Show - Montagem nacional de 1975

Por: Lucas Sá

O grande sucesso de The Rocky Horror Picture Show começou muito antes do seu lançamento nos cinemas Double Feature. Richard O'Brien, a mente insana por trás de tudo isso, foi o responsável por escrever essa aventura bizarra, que de início só tinha intenções de ser um musical teatral fadado ao fracasso. No DVD duplo do filme, Richard O'Brien, que interpreta na adaptação cinematográfica o mordomo ‘’freak’’ Riff Raff, explica melhor as dificuldades do processo de produção da peça, ao qual começou com um público bem raso. Mas o que tornou essa saga científica banhada a sangue ser cultuada por fãs? Provavelmente seja o tom de liberdade que a peça/filme expressa em cada letra de suas músicas, o que incomoda muitos puritanos clássicos que abominaram essa "nova dobrada do tempo" - Time Warp. Oras! Um travesti cantando, "não sonhe que é, seja!", todo molhado com trajes sensuais colado ao corpo não é nada convencional, mas expressa uma ruptura, um sentimento de liberdade, que muitos, mas MUITOS se identificaram, sendo estes marginalizados.

Inúmeras montagens do musical, principalmente com o sucesso do filme, foram sendo montadas em vários países. O Brasil, que passava por um momento de crises sociais e econômicas em 1975, recebe a sua primeira montagem, no mesmo ano do lançamento do filme no Reino Unido, sendo que muitos dizem ter tido sua primeira exibição em uma sessão de Grindhouse, junto com o famoso trash de Sam Raimi, Evil Dead. Está primeira exibição do filme foi um fracasso total, o que preocupou os produtores e o diretor Jim Sharman. Pessoas saíram no meio da exibição por se sentirem incomodadas com tanta escória e blasfêmia. Mas depois de uma ou duas semanas, o filme, que só era exibido em sessões depois da meia-noite, começou a lotar as salas dos cinemas undergrounds, tendo cada vez mais aceitação por um público que se revela aberto a essas mensagens irônicas de sexo e amor.

"Tudo o que quero falar. Não sou capaz. Eu bebi sangue e quero mais! Mais! Mais! Mais! É uma montante que vem, que você tem também. É um corpo que queima. Preciso de alguém! Me toque! Toque! Toque! Toque!
Eu quero ser SUJA! Me abrace, beije e me leve! Criatura da noite!" - Diana Strella como Janet Weiss,
cantando Touch-a Touch-a Touch-a Touch Me, na versão teatral nacional.


A montagem brasileira do musical de Richard O'Brien, foi dirigida por Rubens Corrêa e estreou no Teatro da Praia, no Rio de Janeiro de 1975. Foi um grande estouro! A união de liberdade de expressão com a crise que o país passava foi um dos aspectos desse sucesso, e talvez da própria motivação de Rubens Corrêa por fazer a peça. O elenco, com vários atores respeitáveis como: Wolf Maia no papel de Brad Majors, Diana Strella como Janet Weiss, Eduardo Conde como o "doce travesti" Frank N. Furter, Nildo Parente como o narrador pastelão e Lucélia Santos como Baleira. Além de atores profissionais, a montagem teve a participação do cantor Tom Zé, com o papel que anteriormente foi do autor original (Richard O'Brien), o mordomo macabro Riff Raff. Pela rede, ainda se encontra alguns trechos de jornais falando sobre o espetáculo:

DIANA DE VOLTA AO ROCK NO TEATRO DA PRAIA
"Simplesmente Diana. Fez shows de horror, levou o diabo até Minas, foi estrela dos anos 20, 50 e do ano 2000. E, hoje, de lacinhos cor-de-rosa, estréia em “Rock Horror Show”, no Teatro da Praia, dirigida pro Rubens Correa. E Diana diz isso rindo, com cara de apaixonada, como se Rubens fosse um mito, um santo, um príncipe encantado. “É incrível trabalhar com ele; uma pessoa incapaz de qualquer desrespeito, sem vedetismo, e de uma cumplicidade com o elenco que emociona.”(...) Foi Guilherme Araújo, produtor de Rock Horror Show, quem olhou, gostou e convidou. Diana pasmou: “Sério que vou ganhar dinheiro, cantando e dançando?"

Os músicos Jorge Mautner, Zé Rodrix e Kao Rossman foram responsáveis pela versão em português das músicas da montagem original. Se percebe que teve certas mudanças nos ritmos das músicas, são um pouco mais lentas e menos sugestivas no quesito "sexual", mas nada que deforme as do original, pelo ao contrário, servem como uma variação das música que já tiveram inúmeras sonoridades batida por outras montagens, sobretudo as internacionais. Mautner, Rodrix e Rossman tentaram captar a áurea da trilha primária, aliado a um estilo mais "abrasileirado", tanto no ritmo quanto nas letras. Isso pode ser percebido na música Eu Te Faço Ser Homem (I Can Make You A Man), quando Frank N. Furter (Eduardo Conde) faz seu protótipo musculoso de Frankenstein, chamado Rocky (Acácio Gonçalves). Ele canta: "Ficou esguio, um amor, em boa forma... Com proteínas e vitaminas, com muita carne e ovos crus, aveia, trigo e pão, espinafre e até CUSCUZ! E li um folheto que dizia assim: em apenas setes dias, eu te faço ser homem!". Há também uma inserção de uma música que não tem nas outras montagens, chamada É Só Me Chamar Tudo Bem, que pode ser considera um chote com sanfona, se assemelhando a um sertanejo mais calmo, o que fixa novamente essa idéia cultura do Brasil nas composições.

Em relação as canções em geral, prevaleceu as referências sobre o cinema que são clássicas nas letras do musical, sobretudo os de ficção científica e os filmes B (trash). Música como Science Fiction e Luz na Casa do Frankenstein, são mais do que um tributo ao gênero. Com citações sobre Flash Gordon, Tarântula, Frankenstein e a atriz Fay Wray, do filme King Kong de 1933. Além das músicas o cenário é outro elemento que incorpora essas citações, que não são poucas! No filme elas são bem mais visíveis, como na cena final em que a personagem Magenta (Patricia Quinn) usa um penteado esquizofrênico inspirado no filme A Noiva de Frankenstein.
Estou escrevendo sobre as músicas como se estivesse visto o musical de 1975. Mas não, não vi, ao contrário não teria 18 anos. O que foi salvo dessa montagem foi pouco material, as únicas informações que se tem são rasas, salvo por algumas fotos e recortes de jornais, mas o que se pode ter de mais completo sobre a montagem foi um LP lançado pela Som Livre, e que graças a uma pessoa, que postou as músicas em um site de armazenamento, foi que pude escutar as canções da montagem. O disco contém na capa uma foto expressiva e inusitada de Eduardo Conde interpretando Frank N. Furter, uma bela capa, que pode ser encontrada em algum sebo da vida (por favor, se algum leitor souber onde vende, entre em contato!). Mas o que é um fato indispensável em qualquer montagem de Rocky Horror é deixar de lado as duas músicas mais idolatradas e conhecidas: Time Warp e Sweet Transvestite. Pois é, e justamente no LP faltam essas duas músicas! Um erro fatal! Não sei se foi a distribuidora que não incluiu as faixas no disco ou se os músicos nem fizeram a versão das canções para a peça. Uma dúvida torturante.

Falei de todo o sucesso da peça... Mas não foi bem assim, houve certo desânimo do público em relação ao estilo norte-americano das apresentações iniciais, já que o filme tem tendências explicitas aos filmes B do cinema hollywoodiano, e como fica o espectador que não conhece esses filmes? Ninguém ria ou se mexia, logo tiveram que fazer várias mudanças no elenco original, como a troca de Eduardo Connde, que saiu não pela sua atuação, mas por ter ficado mal, pois estava com sérios problemas de hepatite. Sendo que por indicação de Guilherme Araújo, o diretor chamou o ator baiano conhecido artisticamente como "Edy Star". Este sim foi quem interpretou, pelo ou menos é o que dizem, um verdadeiro FRANK N. FURTER, ao qual ele mesmo o chama de "vampirão". Seu comportamento extravagante e imoral foi motivo de birras internas entre alguns dos outros atores da montagem, que se sentiam ofendidos por sua presença. Edy Star foi responsável por trazer o humor a peça, introduzindo elementos das famosas e escrachadas pornochanchadas, que na época de 70 tinham grande aceitação pelo público bastardo do cinema nacional, por suas imagens apelativas de abuso visual ao corpo nú.


EDY STAR ESCREVEU SOBRE A PEÇA EM SEU BLOG:
O Guilherme me conversou:
- Quero que você transforme essa peça numa chanchada! Eu vi a obra em Londres, o povo adorava... Ria, participava... Aqui, não acontece nada... Ninguém ri, ficam com cara de idiotas. A única pessoa que consegue um riso,é único que não é ator: o Zé Rodrix... Você faça suas loucuras e dê um jeito nisso...
- É, vamos ver o que se pode fazer - respondi - mas não quero problemas com o elenco...
E disse-me ele:

- Eu sei que você vai fazer o melhor...

Na cena no laboratório do Vampirâo (Frank N. Furter), o palco girou enquanto a bateria rufava, me voltei aos poucos para a platéia, abri a enorme capa negra, e de salto alto, espartilho e tapa-sex, uma cabeleira loira imensa e desgrenhada, eu era o Frank Father provocador: ''Oba, oba, eu já me apresentei?'' E logo comecei a colocar meus ''cacos'' e me divertir... Ah meus deuses, fui uma ventania naquele palco... Feri os brios dos pobres de espírito...

Dúvida: será que o ator na capa ou até mesmo a voz do disco é de Eduardo Conde ou Edy Star?

Além desta montagem, teve inúmeras outras aqui no Brasil, mas nenhuma tão polêmica e lembrada como a versão de 1975. Miguel Falabella foi um dos diretores que se propôs a fazer sua própria versão do musical nos anos 80, tendo como atores os alunos do Colégio Andrews no Rio de Janeiro. Entre o elenco estava a ainda adolescente Marisa Monte, que em alguns anos se tornou uma das melhores cantoras de MPB. Em 1995 teve outra montagem da peça de Richard O'Brien, sendo a estréia da atriz Claudia Ohana no teatro.

"E neste pobre planeta restou. Um bando de insetos. De raça humana se chamou.
Perdidos no tempo, no
espaço e na dor... Na dor"